A Mata Atlântica resiste com soluções que florescem em rede
Apesar dos inúmeros desafios enfrentados, a Mata Atlântica resiste, graças ao trabalho integrado de diversas instituições e pessoas que atuam em prol da sua conservação e restauração. Pesquisa científica, criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), ativismo ambiental, arte, permacultura e educação são algumas de uma rede de ações interligadas que se fortalecem mutuamente. É nessa conexão entre saberes e práticas que surgem soluções inovadoras para preservar um dos biomas mais ameaçados e ricos do Brasil.
Na Semana da Mata Atlântica, a Apremavi ouviu organizações parceiras que atuam ativamente pela conservação e restauração do bioma. Confira os destaques dessas iniciativas e saiba mais sobre quem trabalha pela Mata Atlântica em pé.
Conhecer para conservar: a pesquisa científica do Mater Natura
A pesquisa científica ocupa um papel estratégico, especialmente quando conecta o conhecimento técnico à proteção efetiva de espécies e territórios. É com esse espírito que o Mater Natura – Instituto de Estudos Ambientais atua há mais de 40 anos, desenvolvendo ações voltadas à conservação da biodiversidade brasileira, com atenção especial à Mata Atlântica e seus ecossistemas costeiros e marinhos. “Apesar do bioma estar fragmentado e impactado, ainda é biodiverso e possui espécies que precisam ser descobertas e protegidas. Precisamos manter o que temos em pé”, comenta Ana Paula Silva, bióloga e coordenadora de projetos do Mater Natura em entrevista à Apremavi.
Desde sua fundação, o Mater Natura participou da descoberta de 26 novas espécies da fauna brasileira, incluindo pequenos e singulares habitantes da floresta como o bicudinho-do-brejo (Formicivora acutirostris), um pássaro raro e ameaçado que vive exclusivamente em brejos do litoral sul do Brasil. Sua descoberta, em 1995, e os estudos subsequentes coordenados com a ONG foram decisivos para que a Baía de Antonina, no Paraná, fosse reconhecida em 2017 como um sítio Ramsar – zona úmida classificada como local de importância ecológica internacional ao abrigo da Convenção sobre as Zonas Úmidas de Importância Internacional.
Além das descobertas científicas, o Mater Natura tem papel ativo na criação e estruturação de RPPNs e na atualização de listas de espécies ameaçadas, especialmente em Santa Catarina e Paraná. Os estudos desenvolvidos pela equipe ajudam a identificar bioindicadores, compreender o manejo de sementes e reconhecer a importância das fitofisionomias menos conhecidas da Mata Atlântica, contribuindo para estratégias mais eficazes de conservação.
“Levantamos a bandeira da pesquisa como contribuição para a conservação da Mata Atlântica”, relata a bióloga. Segundo ela, o investimento em conhecimento técnico é essencial para revelar o que ainda não foi descoberto e fortalecer estratégias como a criação de Unidades de Conservação e o manejo de espécies ameaçadas. Investir em pesquisa é essencial: “As pessoas precisam conhecer para poder conservar. Esse conhecimento técnico nos orienta sobre onde e como devemos agir.”

Bicudinho-do-brejo, uma das espécies estudadas por pesquisadores do Mater Natura. Foto: Aaron Maizlish CC BY-NC 2.0.
SPVS e a produção de natureza em rede: RPPNs que conectam e conservam
Desde 1984, a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) atua na proteção da natureza no Brasil, com forte presença na Grande Reserva Mata Atlântica, o maior remanescente contínuo do bioma, entre São Paulo, Paraná e Santa Catarina. A SPVS desenvolve iniciativas que unem proteção ambiental, valorização dos serviços ecossistêmicos e desenvolvimento sustentável.
Inspirada em experiências na Argentina, a iniciativa da Grande Reserva Mata Atlântica foi oficialmente lançada em 2018, durante o Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação. Ela surgiu a partir do conceito de produção de natureza, uma abordagem que valoriza os serviços ecossistêmicos, conecta conservação à economia e propõe um novo olhar sobre paisagens naturais.
Essa visão inovadora propõe que a natureza seja encarada como ativo estratégico e produtivo, capaz de gerar desenvolvimento sustentável por meio de atividades econômicas sustentáveis, como o ecoturismo. A Grande Reserva é uma iniciativa coletiva e em rede, que já reúne cerca de 900 membros entre ONGs, empresas, gestão pública e comunidades locais. Parte do compromisso envolve o diálogo com trabalhadores da região, promovendo inclusão e desenvolvimento socioeconômico. O impacto dessas reservas vai além da biodiversidade: entre 2005 e 2022, só o município de Antonina (PR) recebeu quase R$ 40 milhões em repasses do ICMS Ecológico, oriundos das reservas da SPVS, recursos aplicados, principalmente, nas áreas de educação e saúde.
“O turismo é o carro-chefe da economia restaurativa”, explica Ricardo Borges, engenheiro florestal e coordenador de comunicação da Grande Reserva Mata Atlântica em entrevista à Apremavi. “Essa é uma região que já tinha vocação turística, e a proposta da Grande Reserva ajudou a potencializar isso de forma mais estruturada, com foco em conservação e inclusão social.”
A proposta da Grande Reserva extrapola os limites de uma UC ao propor uma paisagem funcional e interconectada, com trânsito de espécies, atividades econômicas sustentáveis e protagonismo de atores locais. Hoje, a SPVS compartilha essa metodologia com outras regiões da Mata Atlântica e em outros biomas, buscando ampliar a escala.
“A produção da natureza tem o potencial de transformar o Brasil no maior produtor de natureza do mundo”, afirma Ricardo. “Estamos falando do bioma onde vive a maior parte da população brasileira. Se conseguirmos consolidar esse modelo aqui, podemos inspirar outras regiões e enfrentar de forma mais eficaz a crise ambiental global.”
A experiência da SPVS e da Grande Reserva mostra que conservar a Mata Atlântica não é um freio ao desenvolvimento, mas sim um novo motor para a economia, para o bem-estar das comunidades e para a construção de um futuro viável para o planeta.

Paisagem da Grande Reserva Mata Atlântica na região de Guaraqueçaba (PR), reabertura do Portal Guarakessaba e oficinas. Foto: Gabriel Eloi de Marchi.
Acaprena e o ativismo ambiental histórico e atual
Fundada em 1973 por estudantes de Ciências Biológicas da Universidade Regional de Blumenau (FURB), a Associação Catarinense de Preservação da Natureza (ACAPRENA) surgiu inspirada por movimentos semelhantes no Brasil e logo se destacou como pioneira do ambientalismo em Santa Catarina. Desde seus primeiros anos, teve papel decisivo em políticas públicas ambientais, como a criação da FATMA (atualmente Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina), da SETMA (atualmente Secretaria de Estado do Meio Ambiente e da Economia Verde) e da AEMA (Assessoria Especial do Meio Ambiente) na Prefeitura de Blumenau, consolidando sua atuação técnica, política e comunitária, além de apoiar a criação de outras ONGs, como a própria Apremavi.
Com uma trajetória marcada pela articulação técnica e política, Lauro Bacca, biólogo e um dos fundadores da Acaprena, traz reflexões contundentes sobre os desafios do ativismo ambiental no Brasil.
Embora importantes conquistas tenham sido alcançadas, como a criação do Parque Nacional da Serra do Itajaí e a aprovação da Lei da Mata Atlântica, vivemos hoje um momento de esvaziamento do ativismo e de reação contra políticas ambientais. “Estamos enfrentando uma crise de lideranças. E há um agravante: muitos jovens não se sentem convocados a lutar por essas causas, talvez por viverem uma realidade mais confortável.”
Entre os principais legados do ativismo da Acaprena está a inserção da pauta ambiental no debate público. A entidade tem trabalhado de forma constante pela criação e melhoria de legislações ambientais, pela divulgação de pautas ambientais na imprensa regional e pela conscientização da população. “Ainda enfrentamos desafios, o aumento da produção de resíduos e os retrocessos legislativos, como o avanço do chamado PL da Devastação.” Lauro destaca também a importância de mudar o paradigma de relação com a natureza. “Precisamos substituir uma visão antropocêntrica por uma visão ecocêntrica.” Apesar das ameaças, ele enxerga sinais de transição para uma consciência ambiental mais ativa. “Falta agora os líderes políticos perceberem que é possível melhorar a qualidade de vida sem destruir o meio ambiente.”
Ao relembrar o processo de criação do Parque Nacional da Serra do Itajaí, Lauro reconhece o protagonismo de lideranças como Wigold Schäffer, João de Deus Medeiros e a potência do trabalho coletivo. No entanto, alerta para as dificuldades enfrentadas durante o processo, como a disseminação de informações distorcidas e o medo provocado por boatos infundados: “Diziam que 400 mil pessoas seriam retiradas do local. E mesmo proprietários fora da área do parque se sentiam ameaçados.”
Apesar das dificuldades, o projeto foi adiante. Apenas 12 propriedades foram desapropriadas para a criação da Unidade de Conservação, cinco delas já indenizadas. “Foi uma experiência difícil, com momentos traumáticos, mas extremamente rica e positiva”, relata. Ele observa, no entanto, que novos desafios surgem, como a discussão sobre eventuais sobreposições com terras indígenas: “É uma questão sensível, que precisa ser tratada com diálogo e responsabilidade, sem generalizações.”

Destruição na Serra do Itajaí; Testemunhando a triste devastação das Araucárias, em desmatamentos que corriam soltos nos anos 1980; Passeata no Centro de Blumenau em protesto contra a intenção de se instalar na cidade uma Usina de Gaseificação do poluente carvão mineral; Grupo da Acaprena numa das 59 travessias do rio Garcia, procurando conhecer a região, o que ajudou muito na luta pela criação do Parque Nacional da Serra do Itajaí; ante a notícia de que as espetaculares Sete Quedas do rio Paraná iriam desaparecer, a Acaprena encheu um ônibus com mais de 40 participantes para conhecer o espetáculo, prestes a sumir para sempre sob as águas da Represa da Hidrelétrica da Itaipu Binacional. Fotos: Lauro Bacca.
Instituto Çarakura: arte, educação e afeto para restaurar vínculos com a Mata Atlântica
Em Florianópolis (SC), o Instituto ÇaraKura cultiva mais do que mudas de árvores: cultiva vínculos afetivos entre pessoas e florestas. Fundado a partir das vivências no Sítio ÇaraKura, desde 2017 o Instituto vem se consolidando como uma referência em educação ambiental aliada à arte, à permacultura e à restauração ecológica da Mata Atlântica.
“A gente quer proporcionar uma experiência viva como ferramenta de transformação”, explica Andrea de Oliveira, pedagoga e presidente do Instituto. Essa proposta se materializa quando crianças entram na floresta com enxadas de bambu adaptadas às suas mãos pequenas. Ali, escutam histórias, desenham, tocam o solo. “Elas se envolvem com muito entusiasmo”, conta Andrea. “Esse contato com a natureza e com as expressões artísticas resgata questões culturais e estimula o encantamento com a vida.”
O Sítio ÇaraKura, que deu origem ao Instituto, permanece como núcleo das ações: “É um lugar que desperta memórias da infância e ajuda a criar um vínculo afetivo com a Mata Atlântica.” Com sua estética rústica e estruturas feitas por bioconstrução, ele convida a uma reconexão profunda. “Tudo ali é parte da experiência, até o banheiro de chão de terra”, relata Andrea. O espaço acolhe desde grupos escolares até formações para educadores. A atuação do instituto também é marcada por projetos de restauração ecológica baseados na permacultura, filosofia que orienta práticas integradas e sustentáveis, com uso consciente dos recursos locais. “A gente fecha ciclos. Usa o que tem, escuta o território. São soluções simples, mas muito eficazes, que fortalecem a autonomia das comunidades.”
Uma das principais estratégias de restauração hoje dentro da abordagem educativa são as atividades de educação florestal. “Queremos renovar o olhar sobre a educação ambiental, trazendo propostas que vão desde atividades imersivas até projetos de educação florestal”, afirma Andrea. “Buscamos implementar trilhas, que chamamos de trilhas da restauração ecológica, e vivências imersivas na floresta, não só nas áreas já restauradas, mas, principalmente, naquelas que ainda precisam ser restauradas.”
A transdisciplinaridade é um eixo estruturante. O Instituto busca integrar saberes populares com o conhecimento técnico e científico. “Quando a comunidade se reconhece nos processos, ela se envolve mais, com pertencimento e afeto. Atuamos a partir de uma escala afetiva, onde o encantamento é o ponto de partida.”
Em tempos de crise ecológica e desconexão com a natureza, o trabalho do Instituto ÇaraKura mostra que restaurar a floresta também é restaurar relações, com a terra, com os outros, com o afeto, com a brincadeira e com a nossa própria história.

Atividades de educação ambiental realizadas com as crianças pelo Instituto Çarakura e visita das Unidades Regionais do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica. Fotos: Arquivo Instituto Çarakura e Carolina Schäffer.
Autora: Thamara Santos de Almeida.
Revisão: Carolina Schäffer e Vitor Lauro Zanelatto.
Foto de capa: Gabriel Eloi de Marchi.