ONGs apresentam dados ao STF para derrubar lei que altera APPs urbanas, por ISA
Legislação ameaça biodiversidade, aumenta o risco de desastres ambientais e agrava crises hídrica e climática, segundo estudos incluídos em manifestação
DO INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL | Organizações da sociedade civil protocolaram um pedido, na última sexta-feira (19), para entrar como amici curiae (“amigos da corte”) da ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que pede a declaração de inconstitucionalidade da lei que permite a redução e até a eliminação de Áreas de Preservação Permanente (APPs) nas margens de rios em cidades. O amici curiae é uma instituição ou pessoa que fornece informações e auxilia as partes em um processo judicial
A nova legislação é considerada por especialistas como o mais grave retrocesso ambiental no atual governo. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) foi protocolada, em abril, pelo PSB, PSOL, PT e Rede. Além de alegar que a norma viola a Constituição, a ADI pede medida cautelar para suspender imediatamente seus efeitos.
Votado pelo Congresso no ano passado, o Projeto de Lei (PL) que originou a Lei n.º 14.285/2021, conhecida como “Lei das APPs Urbanas”, tramitou em tempo recorde: foi aprovado sem audiências públicas, sem passar em comissões e em votações expressas nos plenários da Câmara e do Senado. A norma foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no apagar das luzes de 2021, em 29 de dezembro.
Com a lei, cada um dos 5.570 municípios brasileiros fica autorizado a reduzir ou mesmo eliminar as APPs hídricas dentro do perímetro urbano, possibilitando o desmatamento e a instalação de imóveis e empreendimentos de impacto nessas áreas sensíveis. A medida altera o Código Florestal, que determina uma faixa de 30 a 500 metros para as áreas de proteção que não foram desmatadas antes de 2008, dependendo da largura do curso d’água, em todo país.
Em fevereiro, a Câmara de Meio Ambiente do Ministério Público Federal manifestou-se contra as alterações. O colegiado entendeu como inconstitucional a permissão para que municípios reduzam a proteção estabelecida pela legislação federal.
De acordo com o Código Florestal, as APPs são áreas essenciais para a manutenção do equilíbrio ecológico, prestando serviços ambientais como a preservação dos recursos hídricos, da biodiversidade e a manutenção dos solos, garantindo a estabilidade do solo e prevenindo catástrofes com enxurradas e deslizamentos de terra, como a que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro, em junho.
Na ação, o ISA, Observatório do Clima, SOS Mata Atlântica, WWF Brasil, Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica e a Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi) afirmam que, entre os efeitos mais nocivos da lei, estão a autorização para novos desmatamentos e a instalação de novas ocupações e atividades poluentes de alto impacto ambiental nas margens de rios, sem qualquer estudo técnico.
Antes, apenas excepcionalmente atividades econômicas poderiam ser instaladas nessas áreas, sob justificativa de “utilidade pública, interesse social ou baixo impacto”. Agora, com a nova lei, qualquer empreendimento ou ocupação pode ser realizada nas margens de rios, desde loteamentos de casas até indústrias poluentes. A norma libera até mesmo atividades proibidas pelo próprio STF, como as de tratamento de lixo, que podem gerar contaminação dos rios.
Municípios já reduzem APPS
“Os rios e a biodiversidade não conhecem fronteiras municipais. Os desmatamentos e os consequentes danos cometidos por um município serão sentidos em outros municípios, estados e até países”, afirma Maurício Guetta, assessor jurídico do ISA. “Deixar que cada um dos 5.570 municípios desrespeite o piso mínimo federal e defina suas margens de proteção a rios, inclusive com a possibilidade de simplesmente eliminá-las, configura uma das mais graves ameaças ao equilíbrio ecológico”.
Vários municípios já começaram a reduzir ou eliminar APPs de cursos d’água. Menos de dois meses depois da edição da nova legislação federal e sem qualquer processo de avaliação técnica, Tiradentes do Sul (RS) aprovou uma lei municipal que prevê faixas marginais de 2,5 metros.
Trata-se de uma proteção insignificante para manter as funções dessa vegetação, como explica João de Deus Medeiros, coordenador-geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica. “Ter uma faixa ripária de 2,5 metros ou nenhuma faria pouca diferença, já que as funções remetidas a essa faixa ripária, com uma extensão tão reduzida, teriam um comprometimento completo de sua eficácia”.
Para ele, essa é a razão maior para defender a manutenção de um parâmetro mínimo nacional, como estabelece o Código Florestal. “Sabemos que nos municípios há muita pressão e interesses para ocupação dessas áreas, notadamente em virtude da especulação imobiliária típica das áreas urbanas. Remeter aos municípios a competência plena nessa matéria poderá gerar prejuízos socioambientais sérios”, ressalta.
Na contramão do mundo e da comunidade científica, a Lei das APPs Urbanas também contribui para o agravamento da crise climática nas cidades. “Nesse momento em que os efeitos de eventos extremos decorrentes das mudanças climáticas globais se expressam em diversos municípios, deixando prejuízos de toda ordem para a coletividade, sejam pelas inundações e deslizamentos de encostas, seja pelas estiagens prolongadas que afetam a segurança hídrica de milhões de pessoas, a manutenção dessa lei reflete uma grande irresponsabilidade; configura um atentado à segurança e sustentabilidade das zonas urbanas”, explica Medeiros.
A petição das organizações da sociedade civil argumenta que o setor que mais emite gases causadores da emergência climática é o de “mudança do uso da terra”, com 46% do total, o que está diretamente ligado ao desmatamento. “Diante desse quadro, a abertura de faixas marginais de preservação permanente para novos desmatamentos atenta contra a necessidade de redução das emissões de gases causadores das mudanças do clima”, diz.
84% das APPs urbanas preservadas
A petição também analisa a questão hídrica no país. De acordo com estudo do MapBiomas, em pouco mais de três décadas o país perdeu mais de três milhões de hectares de superfície coberta por água, área maior do que o estado de Alagoas, ou seis vezes maior do que o Distrito Federal. O problema tem relação direta com o desmatamento das APPs.
“O estado de Mato Grosso do Sul, no Pantanal, perdeu 57% de suas águas no período. Na Amazônia, bioma qualificado como patrimônio nacional, o Rio Negro perdeu 22% de sua superfície de água. Já o Rio São Francisco, um dos mais relevantes do país, perdeu cerca de 50% de sua superfície de água nas últimas três décadas”, diz o pedido feito na ADI.
A análise inédita das áreas ainda preservadas num raio de até 30 metros das faixas marginais de rios em perímetros urbanos produzida pelo MapBiomas foi feita para contribuir com o julgamento da ADI e incorporada à manifestação das ONGs. Em 2020, essas áreas ainda intactas representavam 84% do total. “O que significa que grande parte das faixas marginais de rios em áreas urbanas está preservada, podendo ser destruída caso prevaleçam os efeitos da Lei”, argumenta a petição.
O estudo analisou ainda 17 municípios da Amazônia Legal e da Bacia do Paraná, regiões de alta relevância para o equilíbrio ecológico nacional. Nesses municípios, 82% das faixas ciliares de 30 metros estão cobertas por vegetação. “O atual cenário hídrico brasileiro, de rápida perda de capacidade hídrica e de seguidas e crescentes crises de abastecimento público, intensifica a necessidade de proteção efetiva das APPs para a garantia de água para as presentes e futuras gerações”, argumentam as organizações ambientalistas.
A escassez hídrica também traz impactos econômicos que vão além da crise de abastecimento para as residências. A redução de vazão nos rios afeta o transporte de commodities e o suprimento de alimentos. A agricultura irrigada sofre com altas nos custos e perdas de produção. No setor elétrico, o aumento de custos em 2021 foi generalizado não apenas na conta de energia, mas em todos os setores produtivos.
“De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico, os reservatórios de hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste, que geram 70% da energia do país, operavam em 2021 com a mais baixa capacidade da história”, completa o texto do amici curiae.
Autora: Carolina Fasolo – Instituto Socioambiental (ISA)
Foto de capa: Wigold B. Schäffer