Petrópolis e o esforço dos governantes em ignorar o passado
Índices pluviométricos esperados para semanas ou meses são registrados em poucas horas, o solo, em muitas áreas degradadas e alvo de alterações antrópicas significativas, perde sustentação em áreas com declives. Uma paisagem que antes mostrava-se parcimoniosa àqueles desatentos aos riscos da ocupação sem planejamento torna-se em pouco tempo cenário de insegurança geotécnica e uma grave ameaça à vida.
A intensidade das chuvas que atingiram a cidade de Petrópolis (RJ) desde o dia 15 de fevereiro, e com ápice na última semana, foi elemento decisório para que o Brasil observasse mais uma tragédia acontecer. Para quem é morador antigo da cidade, a situação relembra outro episódio sombrio: em 1988 uma situação similar resultou na morte de 171 petropolitanos. Também na região Serrana do Rio de Janeiro, 918 mortes e pelo menos 99 pessoas desaparecidas foram registradas em 2011.
Agora, em 2022, segundo o Corpo de Bombeiros, 178 cidadãos perderam a vida em função das consequências das chuvas na região. Até o final da elaboração deste texto, outras 110 pessoas estavam desaparecidas. A Defesa Civil da cidade informou que foram registrados mais de 700 deslizamentos de terra, e muitas áreas ainda estão instáveis.
Trabalho do Corpo de Bombeiros na busca por sobreviventes em Petrópolis. Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress
Apesar de quererem justificar os episódios recentes como uma desastrosa combinação de eventos naturais, é preciso relembrar que o cenário de destruição e dor visto em Petrópolis é recorrente no Brasil.
O Alto Vale do Itajaí (SC), berço de atuação da Apremavi, também sofreu repetidamente com a falta de planejamento urbano, planos de contingência e, principalmente, ausência de planos para a mudança sistêmica na ocupação de áreas impróprias à atividades antrópicas e portanto, de risco. No caso mais recente, em dezembro de 2020, 21 pessoas morreram na região, após 120 milímetros de chuva em seis horas causarem deslizamentos de terra e enxurradas em comunidades do interior de Presidente Getúlio e Rio do Sul.
Ainda no final de 2021, fortes chuvas afetaram mais de 70 mil pessoas na Bahia. Mais de 25 cidades decretaram Situação de Emergência e, mais uma vez, esforços foram reunidos para socorrer as vítimas, desalojados e desabrigados.
É possível perceber um padrão em todas essas tragédias, comprovado por análises técnicas e dados. Hora, se há informações, conhecimento dos elementos que aumentam as chances de destruição e a ciência repetidas vezes já orientou para as mudanças necessárias na relação entre a sociedade e a ocupação da paisagem, anunciar os elementos naturais como responsáveis pelas mortes, ou tratar tais situações como desastres, não é apenas uma abordagem imoral, é também muito útil àqueles que de fato possuem responsabilidade sobre o assunto e fazem pouco ou quase nada quando se trata de proteção e bem-estar das pessoas.
Faltou vontade e sobraram recursos para prevenir a tragédia
Segundo as informações disponibilizadas no Portal da Transparência, o Estado do Rio de Janeiro gastou apenas metade do previsto em orçamento no programa de prevenção e resposta a desastres. Apenas 47% do valor reservado no erário para ser gasto em estratégias de prevenção e resposta aos riscos de catástrofes foi de fato empenhado em 2021. Foram indicados para aplicações R$ 192,8 milhões deum total de R$ 407,8 milhões previstos no orçamento.
Segundo a apuração da imprensa, a baixa execução não tem relação com a crise financeira do estado. Há um evidente contraste nos investimentos de outras áreas, se comparado com os programas de prevenção de catástrofes. O governo empenhou 86% do total previsto no orçamento de 2021, deixando o programa “Prevenção e Resposta aos Riscos e Recuperação de Áreas Atingidas por Catástrofes” em 42º no ranking de execução, comparado aos 72 previstos no estado. Recursos inicialmente previstos para este e outros programas podem ter sido remanejados para outras áreas ou até mesmo mantidos imobilizados.
Ao contrário da demora para investir na prevenção, os prejuízos materiais da tragédia em Petrópolis já estão sendo divulgados. Segundo um levantamento preliminar da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) o temporal da última semana deverá causar uma perda de R$ 665 milhões, apenas considerando o PIB da cidade. A estimativa de custos para a reconstrução das áreas atingidas e nas obras públicas para a reconstrução da cidade ainda não foram divulgados, mas dado o grave cenário, serão necessários centenas de milhões e anos de trabalho.
A importância das Áreas de Preservação Permanente bem preservadas
Além das Unidades de Conservação, existem no Brasil, por força de lei, outras áreas que devem ser protegidas sempre, independentemente de sua localização no território, como as margens de rios, nascentes e topos de morro, entre outras. Essas áreas são consideradas Áreas de Preservação Permanente (APPs), independentemente de estarem em áreas rurais ou urbanas, em terras particulares ou públicas.
As APPs são áreas que têm um papel crucial na prevenção de riscos de enchentes e desbarrancamentos, colaborando com a proteção das pessoas e da biodiversidade em eventos extremos da Natureza. Mesmo com os dados e situações indicando a necessidade de ampliar as áreas protegidas, a legislação brasileira sobre o assunto sofreu mudanças desastrosas e passíveis de contestações, como a mudança no Código Florestal (2012), e até mesmo as recentes mudanças no regramento sobre APPs em áreas urbanas (PL 14285/2021).
Após a Tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011, especialistas em áreas protegidas e planejamento territorial realizaram um estudo sobre o papel da UCs na mitigação dos efeitos de eventos extremos. Naquela época, a Área de Proteção Ambiental de Petrópolis, Unidade de Conservação de Uso Sustentável, abrigava cerca de 280 mil habitantes e já era apontada como alvo de ocupação de APPs com moradias e atividades industriais e agropecuárias.
O co-fundador e conselheiro da Apremavi, Wigold Schäffer, é um dos autores do documento. Em depoimento ao Observatório do Clima, ele destacou o principal diagnóstico do estudo:
“92% dos deslizamentos que ocorreram naquela ocasião tinham alguma intervenção humana, seja pela construção de moradias, estradas e terraplanagem para construção, entre outras. Apenas 8% dos deslizamentos ocorreram em áreas com vegetação nativa bem conservada”.
Ainda segundo o documento, intervenção antrópica foram responsáveis por 90% dos deslizamentos de terra e rolamento de rochas; como estradas, caminhos, trilhas, terraplanagens, desmatamento de encostas e topos de morro, degradação da vegetação nativa e áreas de pastagens degradadas. Constatou-se também que as áreas que foram mais intensamente afetadas pela tragédia são aquelas consideradas APPs (margens de cursos d’água, encostas com alta declividade e topos de morro ou montanhas). Verificou-se, por outro lado, que nas áreas com a vegetação nativa bem conservada, mesmo quando localizadas em áreas com alta declividade ou topos de morro ou montanhas, a quantidade de deslizamentos e rolamento de rochas foi inferior a 10% do total desses eventos.
Os autores do relatório emitiram uma série de recomendações aos órgãos competentes, como a desocupação das zonas de risco e o cumprimento da legislação. Não há registros de ações posteriores do Governo Federal ou Estadual para a implementação de iniciativas visando a regularização ambiental. Petrópolis, que também foi atingida na tragédia de 2011, tem um quinto de seu território sob alto risco: são mais de 12 mil moradias ameaçadas, segundo o plano municipal de 2018.
Região de Nova Friburgo, após a trágica;edia de 2011. É possivel observar que os deslizamentos ocorreram em áreas consideradas de preservação permanente (APP de topo de morro, de encosta e de margem de rio). Fonte: ‘Áreas de Preservação Permanente e Unidades de Conservação & Áreas de Risco. O que uma coisa tem a ver com a outra?’
Despreparo da mídia para relacionar o caso às mudanças climáticas
A chuva mais intensa registrada em Petrópolis, segundo as medições do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), foi o elemento conclusivo da tragédia. No entanto, a escassez de informações sobre as causas deste desequilíbrio chamam a atenção na maioria das matérias produzidas sobre o assunto.
Se faz necessária a escuta dos especialistas, divulgação dos efeitos das mudanças climáticas e conscientização da população sobre o tema, para que este seja central nas discussões sobre o futuro do país, desde os planejamentos territoriais das cidades até as campanhas e formulação de planos de governo.
Ao conceder uma entrevista para a TV Jovem Pan, o físico Paulo Artaxo, pesquisador brasileiro que integra o grupo de especialistas responsáveis por elaborar os relatórios do IPCC, fez questão de destacar a urgência em falar e agir sobre as mudanças climáticas; e não apenas esperar para remediar suas consequências.
“Essas tragédias são evitáveis. O Rio de Janeiro possui três radares, capazes de prever com razoável precisão a quantidade de chuvas. A questão não é técnica ou científica, mas sim contar com governos que se preocupem em fazer o necessário para prevenir tragédias. Os eventos climáticos extremos cada vez mais trazem prejuízos socioambientais e econômicos, falta ao país um plano de adaptação às mudanças climáticas”.
Entrevista completa concedida por Paulo Artaxo à Jovem Pan.
Autor: Vitor Lauro Zanelatto.
Revisão: Carolina Schäffer.
Foto de Capa: Registro do socorro às vítimas da tragédia em Petrópolis. Eduardo Anizelli/FolhaPress