Em seu maior evento climático extremo, a solidariedade tem resgatado o RS
O Rio Grande do Sul está enfrentando seu maior evento climático extremo. Segundo a Defesa Civil do estado, até o dia 05 de maio cerca de 700 mil pessoas já tinham sido afetadas diretamente, com 15.192 pessoas em abrigos, 80.573 desabrigadas, 155 feridas, 100 desaparecidos e 75 vítimas. Frente a isso, inúmeras ações de solidariedade se espalham pelo RS.
O caos iniciou no dia 30 de abril na região Central do estado e indo até a região de Taquari, devastando cidades inteiras, como Muçum e Roca Sales, até chegar a região da Serra e Vale do Caí no dia 02 de maio. A bióloga Emanuelle Pasa, que mora em Caxias do Sul, ficou preocupada com o aumento das chuvas, principalmente com o risco de isolamento e de perder o contato com a sua família, como ocorreu na enchente de 2023 em Nova Roma do Sul.
Em entrevista para a Apremavi, Emanuelle relata como transformou, junto com amigos, a dor em ação: “Esses últimos dias têm sido de muita dor. Uma mistura de dor, de estado de atordoamento e raiva pelas inúmeras situações que poderiam ter sido eliminadas ou amenizadas. Aos poucos, conversando com os amigos percebemos que os sentimentos eram muito parecidos e que aquela situação de estarrecimento frente às notícias da catástrofe estavam nos consumindo. E assim a dor foi se transformando em luta.”
Junto com amigos, Emanuelle formou um grupo com foco na doação de alimentos, roupas, itens de limpeza e água, além da produção de marmitas: “Reativamos o grupo que atuou na enchente passada e começamos a mobilizar mais pessoas, atualmente somos mais de 70 integrantes, com as doações sendo encaminhadas para as cidades do Vale do Taquari.”
O cenário de catástrofe seguiu atingindo outras regiões do estado, como a região metropolitana e as cidades dos arredores, como o Vale dos Sinos. Daiana Schwengber, também bióloga, saiu de Porto Alegre para ver como seus pais e sua comunidade estavam e acabou abrigada com eles na casa de amigos, pois a água chegou rapidamente: inundou tanto a casa dos seus pais como a sede da empresa em que Daiana é sócia.
“Eu acabei ficando isolada em São Leopoldo, abrigada na casa de amigos, tendo os privilégios de não precisar ir para abrigo, nem meus pais. Automaticamente comecei a atuar no acolhimento das pessoas que estavam sendo resgatadas nos abrigos da forma que era possível, arrecadando alimentos, cozinhando marmitas, realizando a baldeação de recursos de um lado para o outro enquanto o número de desabrigados só aumentava”, relatou Daiana.
Ela também fala sobre os sentimentos que surgem observando a situação com as lentes de bióloga, que trabalha com questões socioambientais: “Sinto impotência, porque a gente fala e trabalha com mudanças climáticas há muito tempo, com esse olhar sobre o impacto que geramos negativamente no ambiente, e do nada estou dentro de uma catástrofe, vendo as pessoas que a gente mais gosta sofrer, meus gatos presos, não conseguindo chegar neles. Foram dias de muita angústia, de muita tristeza. A gente não sabe onde estão as pessoas.”
Relata ainda, sobre as inúmeras lacunas para lidar com momentos como esse: “Isso só nos mostra o quanto estamos despreparados para uma questão como essa emocionalmente, mas também na gestão das demandas da emergência climática, de comunicação efetiva e assertiva. Muitas pessoas estão se apropriando de informações erradas e passam adiante, e não tem noção, mas a maioria é solidária.”
Pátio da sede da Apoena Socioambiental, empresa em que Daiana é sócia, inundado, em São Leopoldo (RS). Foto: Leandro José Haubert
A sociedade civil protagoniza a ajuda
A situação se agravou ainda mais na sexta (03/05). Depois de já ter devastado várias regiões, a enchente chegou na região metropolitana de Porto Alegre e as cidades começaram a ser inundadas rapidamente, como Porto Alegre, Canoas, Guaíba e Eldorado do Sul; esta última segue hoje, 08/05, com 95% da sua área inundada e Canoas, com cerca de 65%. Em Porto Alegre, a enchente superou os índices da cheia histórica de 1941, quando a inundação foi 53 centímetros menor do que os 5,29 metros atingidos em 2024.
Dentro desse cenário desolador, o foco emergente tem sido resgatar e acolher vidas. A sociedade civil se organizou rapidamente em diversos grupos de voluntários para amparar os atingidos. Uma dessas iniciativas é o Grupo de Emergência Climática do Rio Grande do Sul, criado pelo Instituto Curicaca, e ativado por seus associados e colaboradores, que se organizam principalmente pelo WhatsApp.
Alexandre Krob, coordenador técnico do Curicaca, relata as principais ações do grupo: “Estamos atuando nos locais de doação e triagem e nos abrigos, transportando materiais e alimentos e preparando logística para nossos parceiros governamentais. Outra frente é articular cooperações dirigidas para grupos vulneráveis, trabalhar em cozinhas comunitárias, realizar comunicação essencial, arrecadar recursos financeiros para usos estratégicos, instrumentalizar grupos voluntários da sociedade civil. Tudo isso se comunica por um grupo ágil e que se socorre, fortalece e multiplica”.
Além dos associados e colaboradores, Alexandre relata que tem articulado um esforço entre diversas instituições: “Contamos com a parceria de pessoas de diversas organizações, como o Ibama, ICMBio, SEMA-RS, Polícia Rodoviária Federal, Comando Ambiental da Brigada Militar, Comando Rodoviário da Brigada Militar e Delegacia Especializada de Meio Ambiente, que são acionados nas cooperações específicas, como no caso do apoio à comunidade Guarani da Ponta do Arado, na Zona Sul de Porto Alegre”.
Alexandre também comenta sobre quais ações são prioritárias: “Nossa demanda passou a ser apoio financeiro, porque estamos cientes e envolvidos com tudo o que está acontecendo e daquilo que precisa de recurso, que não está sendo suprido pela forma geral em que voluntários e doadores trabalham. Para isso, criamos um fundo de doação”.
Doe para o fundo de Emergência Climática do Instituto Curicaca
A médio prazo, Alexandre relata que reflexões precisam ser realizadas para promover ajustes no enfrentamento de crises como essa junto ao poder público: “Já podemos provocar reflexões e exigir ajustes dos órgãos públicos que deveriam estar preparados para isso, uma vez que eventos extremos dessa natureza foram previstos. Por incompetência ou omissão, o RS chegou neste momento sem as mínimas condições para reagir. Temos certeza disso, pois estamos no meio da confusão, vivenciando as dificuldades e preenchendo lacunas de responsabilidade do Estado, que não deveriam existir. Roubos e desvios de doações; inexistência de comunicação articulada imediata entre os órgãos; demora na instalação de um gabinete federal da crise na região; inexistência de ferramenta para cadastro, integração, gestão e acesso às informações são exemplos do despreparo do poder público.”
Por fim, Alexandre espera que a experiência seja útil para dar escala a ações de mitigação e adaptação que o Instituto Curicaca e outras tantas organizações realizam há décadas: “Em longo prazo, melhor utilizar essa experiência de catástrofe para alavancar ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, como na restauração de ambientes naturais; criação de áreas protegidas; fortalecimento da proteção de Unidades de Conservação; valorização, suporte e reconhecimento do modo de vida de comunidades e povos indígenas e populações tradicionais; pressão pela demarcação de terras indígenas; promoção de economias locais sustentáveis e de baixo carbono; educação ambiental e climática, criação e implantação de corredores ecológicos, dentre outros.”
Ainda em Porto Alegre, a arquiteta e empreendedora Aline Daudt e seu companheiro Mailson Queiroz se organizaram para receber as pessoas resgatadas que chegavam na Orla do Guaíba, com ações de acolhimento, doações e carona para casa das famílias e abrigos improvisados: “Começaram a chegar muitas notícias de que as pessoas estavam chegando e de que tinham muitas doações que precisavam ser organizadas. Tudo aconteceu de uma forma muito dinâmica, quem pudesse ajudar de alguma forma que fosse e foi assim que nos dirigimos para o gasômetro, um desses lugares de acolhida. Comecei auxiliando na separação das doações, das roupas, das cobertas e depois ajudei nas caronas e cadastro das pessoas resgatadas. Tudo estava acontecendo muito rápido, então a gente tinha que ir tentando se organizar com a coisa acontecendo.”
Aline, também relata que enquanto socorria as pessoas, a situação do apartamento em que o seu filho estava com o pai em São Leopoldo ia se agravando: “A água chegou até o centro de São Leopoldo, então de repente meu filho não estava mais seguro, ao redor do apartamento do pai dele alagou e eles ficaram ilhados. Então, ao mesmo tempo que eu estava auxiliando no socorro de outras famílias, o meu filho também passava por uma situação muito parecida e eu tentava intermediar um barco com alguém que pudesse ir lá buscar ele, que finalmente já foi resgatado.”
Por fim, ela comenta sobre a exaustão desse trabalho que ainda vai ser necessário por muitos dias: “É um trabalho bem exaustivo, porque obviamente a gente como ser humano quer atender o máximo de pessoas possível. A gente sabe que o trabalho não vai terminar agora, não vai terminar amanhã, não vai terminar no final dessa semana, nem na próxima, então vou seguir trabalhando. Da forma que eu puder contribuir da melhor forma possível.”
Produção de informações essenciais
Além do resgate e acolhimento às vítimas, a cobertura jornalística é primordial. Silvia Marcuzzo – jornalista com foco nas questões socioambientais – tem focado seus esforços em compartilhar informações seguras nas mídias sociais e em reportagens para veículos, como o Extra Classe. Uma das primeiras matérias escrita por ela, foi sobre as perguntas que os governantes precisam responder, já que a situação era prevista dentro do contexto da crise climática.
À medida que a crise se atenuou, Sílvia escreveu sobre a importância de resgatarmos a esperança e a solidariedade em momentos como esse, relatando as diversas ações que ela acompanhou de mobilização. Ela também escreveu sobre as ações solidárias que têm auxiliado o RS e sobre a necessidade dela ser permanente.
Na tarde do dia 06 de maio, em mais uma decisão equivocada dos órgãos públicos, a casa de bombas de drenagem de água foi desligada no bairro em que a Sílvia mora, em Porto Alegre. Com isso, os bairros Menino Deus e Cidade Baixa foram tomados pela água em minutos. Sílvia ficou ilhada e precisou ser resgatada de barco no dia 07.
Em uma live a jornalista comentou sobre a experiência: “Foi uma loucura, difícil pensar e pegar o que precisamos, corremos e protegi minhas pernas achando que iria conseguir sair a pé, mas precisamos sair de barco com voluntários que estão auxiliando no resgate. A minha rua e região estão tomadas pela água, analiso que a minha adolescência foi tranquila e hoje o meu filho de 17 anos já vive essa experiência, mas estamos bem.”
No momento da publicação desta matéria, são milhares de gaúchos que ainda aguardam o resgate em diversos lugares e que seguem como refugiados climáticos em abrigos improvisados. O auxílio está sendo proporcionado em sua maioria por voluntários da sociedade civil. A solidariedade persiste frente a este evento climático extremo, e deve ser exemplo para os que ainda, infelizmente, deverão ser enfrentados na realidade de emergência climática do nosso tempo.
Autora: Thamara Santos de Almeida.
Revisão: Vitor Lauro Zanelatto e Carolina Schäffer.
Foto de capa: Doações arrecadadas pela Defesa Civil para o Rio Grande do Sul. Foto: Marcos Morelli/Prefeitura de Rio Preto.