Restaurando a Caatinga: a experiência do projeto RE-Habitar Ararinha Azul na Bahia
O projeto RE-Habitar Ararinha Azul está restaurando a Caatinga com técnicas inovadoras e tecnologias sociais para recuperar 200 hectares de áreas degradadas, plantando espécies nativas essenciais para a biodiversidade e as comunidades locais.
A Caatinga, exclusiva do Brasil, é o bioma brasileiro menos conhecido, apesar de cobrir cerca de 10% do território nacional. Durante a seca, a paisagem adota tons esbranquiçados a cinzentos, dando origem ao nome “Caatinga” (kaa: mata e tinga: branca) – que significa “mata ou floresta branca” em tupi. Nas primeiras chuvas a floresta branca se transforma em vários tons de verde com a rebrota das folhas.
A rica biodiversidade da Caatinga é resultado de sua interação com o Cerrado, a Amazônia e até mesmo a Mata Atlântica, fazendo dela uma das florestas semiáridas mais diversas do mundo. O bioma abriga 3.150 espécies de plantas, 276 de formigas, 386 de peixes, 98 de anfíbios, 548 de aves, 183 de mamíferos e pelo menos 196 de répteis. Muitas das espécies da fauna e da flora são endêmicas e muitas são ameaçadas de extinção.
Seus ecossistemas estão bastante alterados, com a substituição de vegetação nativa por cultivos e pastagens. O desmatamento e as queimadas, práticas comuns para a preparação da terra para a agropecuária, têm destruído a cobertura vegetal e comprometido a fauna silvestre, a qualidade da água e o equilíbrio do clima e do solo. Restaurar a Caatinga é um desafio complexo que envolve esforços sociais, científicos e tecnológicos, devido à irregularidade das chuvas e à semiaridez.
Fotos 1, 2 e 3 Aspectos da paisagem do Refúgio de Vida Silvestre Ararinha Azul em Curaçá, foto 4 espécime de xique-xique e foto 5 riacho Melancia em época de seca, Curaçá (BA). Fotos: Thamara Santos de Almeida
Projeto RE-Habitar restaura a Caatinga na prática
No dia 10 de julho, durante a V Conferência Brasileira de Restauração Ecológica, a Apremavi realizou uma visita de campo ao projeto RE-Habitar Ararinha Azul em Curaçá (BA), com o intuito de compartilhar os detalhes da restauração no bioma.
Até agora, o projeto atou na recuperação de 200 hectares de Caatinga em propriedades ruaris situadas no Refúgio da Vida Silvestre da Ararinha Azul, habitat da ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), anteriormente extinta na natureza e reintroduzida em 2020. Foram plantadas 47 mil mudas de espécies nativas da Caatinga, essenciais tanto para a ararinha-azul quanto para as comunidades locais. Entre as espécies plantadas estão a caraibeira (Tabebuia aurea), a carnaúba (Copernicia prunifera), o umbuzeiro (Spondias tuberosa), a aroeira (Astronium urundeuva), o xique-xique (Xiquexique gounellei) e a catingueira (Cenostigma pyramidale). As ações são fruto da colaboração entre especialistas e as comunidades locais.
O Plano de Recuperação de Áreas Degradadas do projeto inclui técnicas de semeadura direta, nucleação e enriquecimento, além da aplicação de tecnologias sociais voltadas a prevenção e combate à desertificação e à recuperação dos recursos hídricos.
Técnicas de recuperação
As técnicas de recuperação adotadas pelo projeto foram fundamentadas nos modelos desenvolvidos pelo Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Nema/Univasf), que atua na recuperação dos passivos ambientais decorrentes da obra do Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF) e do Projeto RE-Habitar Ararinha Azul. A seleção das técnicas e o esforço de recuperação foram definidos com base no mapeamento dos níveis de degradação para as áreas onde foram realizadas as intervenções.
- Semeadura
A Dentre as técnicas de semeadura, o projeto adotou a semeadura direta de alta diversidade (SAD), utilizando nove espécies herbáceas nativas da Caatinga. Cerca de 450 kg de sementes foram utilizados para semear 15 hectares de solo exposto.
- Nucleação
Para o plantio das mudas foram utilizadas duas técnicas de nucleação. A primeira delas foi o Núcleo de Aceleração da Regeneração Natural com Espécies Pioneiras (NARNP) que é voltado para áreas altamente degradadas, visando acelerar a regeneração da vegetação. O modelo utiliza espécies pioneiras, conhecidas por seu crescimento rápido e resistência a condições adversas, como cactos e, em sua ausência, bromélias ou espécies da família Euphorbiaceae. Utiliza-se um esquema de plantio com 13 mudas por núcleo para
Esquema da implantação e distribuição das mudas do Núcleo de Aceleração da Regeneração Natural com Espécies Pioneiras (NARNP). Créditos: Socolowski et al 2021 e RE-Habitar 2023.
A segunda é o Núcleo de Aceleração da Regeneração Natural com Espécies Secundárias (NARNS), modelo de plantio projetado para áreas com sinais de regeneração natural ou com alguma disponibilidade de água. O método utiliza espécies secundárias, que têm um papel intermediário na sucessão vegetal, e é cercada por uma malha de galhos de algaroba para criar um microclima favorável ao desenvolvimento das mudas. O NARNS é adequado para áreas com degradação média a baixa, empregando um esquema similar de 13 mudas por núcleo. A inclusão de cactos e, quando necessário, espécies pioneiras substitutas, contribui para o sucesso do plantio, garantindo que o projeto traga benefícios ambientais e não introduza espécies exóticas ou ameaçadas de extinção.
Esquema da implantação e distribuição das mudas do Núcleo de Aceleração da Regeneração Natural com Espécies Secundárias (NARNS). Créditos: Socolowski et al 2021 e RE-Habitar 2023.
“A técnica de nucleação se adequa muito bem à Caatinga, especialmente na savana-estépica, devido à presença de fragmentos de vegetação que formam um conjunto de espécies em formato de ilhas”, relatou Anderson Souza, pesquisador do projeto, durante a visita em campo.
Tecnologias sociais
Tecnologias sociais são práticas desenvolvidas e implementadas por comunidades locais para resolver problemas socioambientais com baixo custo e alta adaptabilidade. Na restauração ecológica elas são essenciais para enfrentar desafios específicos, como a conservação da água e do solo e a recuperação de áreas degradadas.
- Barragens subterrâneas
Um dos exemplos utilizados nas ações do projeto envolve as barragens subterrâneas, que capturam e armazenam água de chuva no solo. No total, sete barragens foram construídas pelo projeto em pequenos riachos intermitentes. O objetivo da implantação dessa tecnologia é aumentar a disponibilidade de água, contribuindo para a preservação da vegetação das matas ciliares, o estabelecimento das técnicas de recuperação adotadas e favorecer o desenvolvimento de atividades produtivas mais sustentáveis pela comunidade local.
- Barragens sucessivas
Ao todo, 39 barragens sucessivas foram implantadas em riachos e afluentes em seis propriedades rurais. Conhecidas como “barragens de pedras”, elas se constituem de um microbarramento formado por rochas soltas, cuidadosamente encaixadas, sem usar argamassa.
Durante as chuvas, barragens sucessivas reduzem a velocidade das enxurradas e contribuem para contenção de sedimentos resultantes de processos erosivos. A tecnologia beneficia a regeneração da vegetação de mata ciliar e a fauna local, além de reduzir o assoreamento de rios e reservatórios e formar patamares de solos férteis e agricultáveis.
Uma das barragens sucessivas construídas no RVS Ararinha Azul. Foto: Thamara Santos de Almeida
- Barragens de detenção
Essas estruturas são similares às barragens sucessivas, porém de menor porte. São indicadas para o controle de processos erosivos em sulcos e ravinas. No âmbito do projeto, foram implantadas 54 barragens de detenção, distribuídas em quatro propriedades.
- Cordões em contorno
A tecnologia consiste na construção de sulcos (valas) escavados no solo em nível para reduzir a velocidade da água sobre o terreno, protegendo o solo, às margens dos cursos de água, reservatórios, estradas e barrancos, além de proporcionar aumento da infiltração de água no solo. Os cordões em contorno construídos nas áreas do projeto totalizaram 19 mil metros.
“As tecnologias foram construídas durante o projeto, com o objetivo de melhorar o solo, evitar erosão, obter uma maior infiltração de água no solo e disponibilizar mais recursos hídricos para as plantas. Além disso, em cada local de plantio o solo foi descompactado com o auxílio de mini retroescavadeiras”, relata Jailton Santos Silva, técnico do projeto sobre o objetivo das tecnologias e o preparo anterior do solo.
Monitoramento da restauração
O monitoramento da restauração no Projeto RE-Habitar inicia logo após a execução das atividades de plantio e a implementação das tecnologias sociais, sendo essencial para garantir a eficácia das técnicas aplicadas. Após o plantio, inicialmente, é feita uma verificação mensal direta nos locais, focando em indicadores simples, como a presença de sinais de herbivoria nas mudas, ataques de pragas, formigas cortadeiras, necessidade de coroamento, espécies vegetais exóticas invasoras e processos erosivos. Esses aspectos são monitorados para identificar problemas rapidamente e realizar intervenções necessárias, utilizando observações diretas que não exigem equipamentos sofisticados.
No primeiro monitoramento, a sobrevivência das mudas é verificada por amostragem em 20% dos núcleos e dos locais de enriquecimento, além da avaliação da cobertura do solo (semeadura). No segundo monitoramento, próximo ao primeiro ano após o plantio, um censo completo é realizado para avaliar a condição das mudas, registrando informações detalhadas sobre a mortalidade e suas possíveis causas, como herbivoria ou competição com outras espécies.
O monitoramento das tecnologias sociais ocorre sempre após o término da estação chuvosa, com o objetivo de avaliar a necessidade de manutenção, a eficiência na contenção de sedimentos (barragens de detenção, barragens sucessivas e cordões em contorno) e o nível de salinidade (barragens subterrâneas. Todos os dados do monitoramento são registrados por meio de um aplicativo desenvolvido pelo projeto, facilitando a gestão e análise das informações.
Após 12 meses, durante a estação chuvosa, são realizadas ações corretivas baseadas nos resultados dos monitoramentos, como o replantio de mudas mortas e manutenção das tecnologias sociais. O Projeto RE-Habitar realiza o monitoramento inicial das áreas de recuperação, mas recomenda-se a continuidade dessa atividade e a inclusão de novos indicadores ecológicos em uma segunda fase para avaliar o funcionamento do ecossistema e garantir a sustentabilidade da restauração.
Monitoramento dos Núcleos realizado em campo com o aplicativo desenvolvido pelo projeto. Foto: Thamara Santos de Almeida.
Lições aprendidas são temas de publicações
O projeto também avançou no compartilhamento e democratização do conhecimento com a publicação de 10 volumes de guias de campo que abordam uma variedade de temas essenciais para a conservação e restauração na Caatinga.
Cada volume explora aspectos específicos, como a importância de espécies vegetais nativas para o ciclo de vida da ararinha-azul, a implementação de tecnologias para conservação do solo e água, e a coleta, beneficiamento e armazenamento de sementes nativas. Outros volumes tratam de técnicas de recuperação de áreas degradadas, produção de mudas, construção de viveiros e a utilização de barragens subterrâneas para captação de água de chuva. Além disso, também é abordado o monitoramento das áreas em recuperação e a aplicação de sistemas agroflorestais adaptados ao semiárido.
O material foi produzido e distribuído durante as capacitações do projeto e estão disponíveis para download gratuito no site do Nema.
O projeto RE-Habitar
RE-Habitar Ararinha-azul é um projeto do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema) da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), aprovado em chamada do Global Environmental Facility (GEF Terrestre) executado entre 2020 e 2023. A iniciativa conta com a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento (Fade) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) como fundação de apoio responsável pela gestão administrativa.
Referências:
Associação Caatinga. (n.d.). Conheça e conserve a Caatinga: No clima da Caatinga – [PDF].
Projeto RE-Habitar Ararinha-azul: implantação de técnicas para a recuperação de áreas degradadas [recurso eletrônico] / Organizado pelo Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (NEMA/UNIVASF). – Petrolina-PE: UNIVASF, 2023.
Projeto RE-Habitar Ararinha-azul: barragens subterrâneas, captação e armazenamento da água da chuva [recurso eletrônico] / Organizado pelo Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (NEMA/UNIVASF). – Petrolina-PE: UNIVASF, 2023.
Projeto RE-Habitar Ararinha-azul: monitoramento de áreas em processo de recuperação [recurso eletrônico] / Organizado pelo Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (NEMA/UNIVASF). – Petrolina-PE: UNIVASF, 2023.
Projeto RE-Habitar Ararinha-azul: Barragens sucessivas de contenção de sedimentos [recurso eletrônico] / Organizado pelo Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (NEMA/UNIVASF). – Petrolina-PE: UNIVASF, 2023.
Projeto RE-Habitar Ararinha-azul: cordões em contorno: tecnologia para a conservação do solo e água no semiárido [recurso eletrônico] / Organizado pelo Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (NEMA/UNIVASF). – Petrolina-PE: UNIVASF, 2022.
Projeto RE-Habitar Ararinha-azul: cordões em contorno: espécies vegetais relevantes para o ciclo de vida da ararinha-azul [recurso eletrônico] / Organizado pelo Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (NEMA/UNIVASF). – Petrolina-PE: UNIVASF, 2022.
Socolowski, F., Vieira, D., Souza, B. R., Melo, F. P., & Rodrigues, R. G. (2021). Restauración de la Caatinga: métodos propuestos para recuperar el más exclusivo y menos conocido ecosistema de Brasil. Multequina, 30(2), 247-263.
Autora: Thamara Santos de Almeida.
Revisão: Carolina Schäffer (Apremavi) e Anderson Souza (Nema-Univasf).
Foto de capa: Refúgio de Vida Silvestre Ararinha Azul, Curaça (BA). Thamara Santos de Almeida.