Sobre a largura mínima das faixas marginais de curso d’água em área urbana com a nova Lei 14.285/2021

14 fev, 2022 | Notícias

Por João de Deus Medeiros, Professor, Biólogo e Dr. em Botânica. Coordenador Geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica.

No apagar das luzes do ano de 2021 o Congresso Nacional “brinda” a sociedade brasileira com a edição da Lei no 14.285, de 29 de dezembro de 2021, a qual alterou dispositivos da lei de proteção da vegetação nativa (Lei no 12.651/2012) referentes à proteção de áreas de preservação permanente em áreas urbanas. Modificou ainda o Art. 22 da Lei no 11.952/2009 e o Art. 4o da lei no 6.766/1979.

A nova lei, como tantas outras que reduzem a proteção ambiental no Brasil, teve destacada participação de parlamentares catarinenses. Sua origem remonta ao PL 2510/2019, de autoria do Deputado Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC); em maio de 2012 é apresentado pela Deputada Angela Amin (PP-SC) requerimento de urgência na tramitação do PL, sendo o mesmo aprovado em agosto de 2021, quando então é designado como relator o Deputado Darci de Matos (PSD-SC).

Ao tramitar no Senado o texto do PL2510/2019 foi alterado, incluindo a previsão de uma faixa mínima de 15 metros de APP ao longo dos cursos d’água em áreas urbanas. Retornando a Câmara, parecer do relator Darci de Matos conclui pela rejeição à emenda do Senado.

Logo após a edição do novo diploma legal muitas críticas e debates sobre a aplicação do mesmo foram suscitados. A crítica maior se associa ao entendimento de que a norma desloca para os municípios e o Distrito Federal a competência para definir as faixas marginais de qualquer curso d’água perene ou intermitente em áreas urbanas consolidadas, de forma distinta dos parâmetros estabelecidos no inciso I, do caput do art. 4o da Lei no 12.651/2012.

O questionamento quanto a incompatibilidade da norma com a Constituição da República é igualmente levantado, argumentando-se que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios a proteção do meio ambiente e o combate a poluição em qualquer de suas formas (Art. 23, IV), contudo, a competência para legislar sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição é remetida à União, aos Estados e ao Distrito Federal (Art. 24, VI). Já o Art. 30 remete ao município a competência para legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber. Nesse contexto resta o questionamento quanto a competência legislativa dos municípios para editar norma estritamente vinculada a proteção do meio ambiente e ao combate à poluição, bem como se, havendo norma geral nacional regrando o tema, isso é cabível e até onde é razoável admitir que a flexibilização na proteção de um curso d’água se restringe tão somente ao interesse local de um dado município.

A respeito da discussão do “interesse local” é pedagógica a transcrição de partes de recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na ação Popular 1003121-88.2022.8.26.0053, onde é ressaltado que “Não fosse a poluição da bacia do Alto Tiete os municípios a jusante poderiam aproveitar os seus recursos hídricos, inclusive para consumo humano”, e ainda, “Nunca perdendo de vista a principais medidas necessárias a solução desse gravíssimo problema ambiental: da melhoria do saneamento (universalização da coleta e tratamento de esgoto), passando pela restauração da vegetação nativa e pelo uso sustentável da terra, ao controle de uso de pesticidas”. Fica evidente que as intervenções sobre um dado curso d’água não restringem seus efeitos aos limites do município. Intervenções que comprometem a qualidade ou o comportamento das águas, invariavelmente afetam diversas outras áreas a jusante, não havendo qualquer plausibilidade num eventual argumento de que a intervenção sobre APP de curso d’água se caracterize como algo meramente de interesse local. Infelizmente, no Brasil são numerosos os casos que poderíamos indicar, a título de exemplo, da extensão das consequências nefastas de intervenções indevidas ao longo dos cursos d’água.

Ainda restrito a interpretação da efetiva mudança trazida as APPs de cursos d’água, registra-se que a lei Lei no 14.285, em seu artigo 2o, estabeleceu que a Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 4o …………………………………………………………………………………………………

§ 10. Em áreas urbanas consolidadas, ouvidos os conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente, lei municipal ou distrital poderá definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo, com regras que estabeleçam:


I – a não ocupação de áreas com risco de desastres;


II – a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e


III – a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de preservação permanente urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental fixados nesta Lei.” (NR)

Como podemos observar do texto legal, não houve alteração no caput do Art 4o da Lei no 12.651/2012, o qual estabelece os parâmetros mínimos das APPs como regra geral nacional, inclusive para as zonas urbanas.

O § 10 original, por sua vez, previa que, “No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, observar-se-á o disposto nos respectivos Planos Diretores e Leis Municipais de Uso do Solo, sem prejuízo do disposto nos incisos do caput” , ou seja, essa previsão não obrigava os municípios a estabelecerem exatamente as mesmas dimensões da faixa de APP do inciso I; a lei municipal poderia,
já com base na redação anterior do § 10 definir faixas marginais distintas. A lei no 12.651 não padronizou as faixas de proteção ao longo dos cursos d’água, apenas estabeleceu a base mínima a ser observada em todo o território nacional. Em sendo assim, o que temos é uma determinação estabelecendo que, para áreas urbanas consolidadas, consoante a nova redação dada pela Lei no 14.285, para definir faixas distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput do artigo 4o da Lei no 12.651/2012, o legislador municipal deverá respeitar estrita observância ao que ficou definido nos novos incisos I, II e III. Não há como interpretar que a nova redação do § 10 elimina a exigência legal de se observar os parâmetros mínimos das faixas marginais de cursos d’água.

Não resta qualquer duvida que a intenção dos proponentes e defensores da proposta ora traduzida na Lei no 14.285 sempre foi remeter aos municípios competência plena, até mesmo para definir faixas inferiores ao que define o inciso I do caput do artigo 4o da Lei no 12.651/2012, contudo essa pretendida e indevida competência plena não encontra respaldo algum no novo texto do § 10.

Considerando que a competência legislativa dos estados só pode aumentar o grau de proteção estabelecido na legislação federal e que, consoante a determinação do Art. 24, § 4o da Constituição da República, a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário, é possível deduzir, subsidiariamente, que qualquer faixa de APP de curso d’água definida em lei municipal que se mostre inferior a largura mínima estabelecida na lei no 12.651/2012 terá sua validade questionada.

A Lei no 14.285/2021 traz uma redação que amplia a insegurança jurídica e poderá acirrar conflitos já existentes e que, frente aos dispositivos vigentes, poderiam ser perfeitamente evitados. A insegurança frente ao texto da nova lei pode ter sido a motivação do envio de Oficio da Federação Catarinense de Municípios (FECAM) endereçado ao Conselho Estadual do Meio Ambiente de Santa Catarina, e que foi apreciado na sua 199a Reunião Ordinária, realizada no dia 04 de fevereiro de 2022. A deliberação do Conselho Estadual do Meio Ambiente de Santa Catarina, propondo a criação de um Grupo de Trabalho para avaliar preliminarmente as implicações da Lei n 14.285/2021 reforça essa percepção de insegurança jurídica com a redação da nova norma.

Relembrando todo o histórico da origem e tramitação do PL 2510/2019, de autoria do Deputado Peninha, não surpreende que o Conselho Estadual do Meio Ambiente de Santa Catarina evite emitir uma resposta direta a FECAM indicando a efetiva abrangência da nova lei; o destacável é o fato de o referido Conselho não respaldar de imediato que a nova lei confere aos municípios a reconhecida pretensão de estabelecer faixas marginais de cursos d’água, em áreas urbanas, inferiores ao mínimo determinado na lei no 12.651/2012.

 

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