Cerca de 78 mil hectares de matas nativas de Carrasco – uma mescla de Caatinga, Cerrado e do que resta de Mata Atlântica no Piauí – estão virando carvão no Sul do Estado. Uma decisão unânime do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) sugere que a área deveria formar o Parque Nacional da Serra Vermelha. No entanto, um projeto ironicamente denominado Energia Verde, incentivado pelo Ministério do Meio Ambiente e aprovado pelo Ibama, autoriza a empresa JB Carbon S/A, do Rio de Janeiro, a derrubar a última floresta do semi-árido brasileiro para produção de carvão.

O objetivo do empreendimento é abastecer as indústrias siderúrgicas do país e do exterior. No primeiro momento o carvão vegetal produzido na Serra Vermelha está sendo consumido por duas siderúrgicas, a Ferguminas, em Minas Gerais, e Fergumar, no Maranhão, alimentando os fornos que produzem ferro gusa. A meta é ultrapassar quatro milhões de toneladas de carvão nos 13 primeiros anos do projeto. Entre os investidores do negócio, aparecem empresas como a JBW Partners Comércio, Importação e Exportação.

Para o biólogo Francisco Soares, presidente da Fundação Rio Parnaíba (FURPA), o empreendimento é responsável pelo maior crime ambiental do Nordeste e um dos maiores do país. "É um grande desmatamento camuflado de plano de manejo", disparou. Já o proprietário da empresa JB Carbon, João Batista Fernandes, afirma que o projeto é de Manejo Florestal Sustentável – um dos maiores do mundo em volume de biomassa. "Fizemos um cronograma de desmate em 13 lotes alternados que serão explorados anualmente. Em 14 anos a floresta estará maior do que a atual", disse o empresário carioca ao rebater as criticas ao projeto.

Falando em nome do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, o diretor do departamento técnico, Carlos Antônio de Moura Fé, disse haver uma confusão entre desmatamento e manejo florestal. "O manejo permite que você corte a árvore deixando parte do seu caule para a rebrota. No momento, a JB Carbon possui uma licença para manejar 5,9 mil hectares e uma nova aérea só será autorizada depois de duas vistorias no local. Após o corte de uma área, ela ficará intocada por 13 anos, tempo suficiente para a recomposição da floresta", garantiu.

"Um Plano de Manejo Florestal Sustentável, não permite o corte raso, com a utilização de toda madeira acima de 2cm no limite aprovado, com a intensidade de corte de 100% da produção florestal. A retirada das árvores teria que ser de forma seletiva e seria necessário ainda outras exigências técnicas. Diante da dimensão do projeto, não foi elaborado o Estudo nem o Relatório de Impacto Ambiental, e, para piorar, não foram realizadas audiências públicas", acusa o biólogo Francisco Soares.

No começo do ano, os procuradores federais Tranvanvan Feitosa e Carlos Wagner Barbosa Guimarães, ambos do Ministério Público Federal, que já tinha alertado o Ibama sobre as deficiências do empreendimento, ingressaram com uma ação civil pública na Justiça Federal, solicitando a suspensão do projeto Energia Verde. Alguns dias depois o juiz federal Clodomir Sebastião Reis, decidiu citar o Ibama e a empresa JB Carbon para que forneçam maiores informações sobre o projeto.

Localizado a mais de 800 km da capital Teresina, numa grande chapada da Serra Vermelha , ocupando áreas dos municípios de Morro Cabeça no Tempo, Curimatá e Redenção do Gurguéia, o projeto Energia Verde fica dentro do condomínio Chapada do Gurguéia, que tem área de 114 mil hectares, divididos em 38 fazendas, entre 19 proprietários. Existem suspeitas sobre a legalidade das terras na região. Em 2005 o Interpi (Instituto de Terras do Piauí) iniciou três ações discriminatórias para investigar a origem das propriedades na área. Num desses processos os técnicos do órgão tentam devolver ao patrimônio imobiliário do Estado do Piauí pelo menos 25 mil hectares.

A área aprovada para manejo florestal pelo projeto Energia Verde, cerca de 77.948 hectares, é maior do que muitos Parques Nacionais, a exemplo de Sete Cidades no Piauí e Ubajara no Ceará. Além disso, a região foi indicada entre as 900 áreas prioritárias para a Conservação da Biodiversidade Brasileira, conforme Relatório Nacional para Convenção sobre Diversidade Biológica, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente.

"Os brejos de altitudes e vários mananciais que descem da Serra Vermelha contribuem para formar as nascentes do rio Rangel, além de outros córregos e mananciais que alimentam a bacia do rio Gurguéia. A cobertura vegetal exerce um papel importante na recarga dos aqüíferos e do lençol freático", explica Francisco Soares. Para ele, a produção de carvão vegetal vai comprometer a bacia dos rios Rangel, Curimatá e Gurguéia, podendo secar riachos e lagoas e até alterar o clima da região, aumentando a própria temperatura local.

Pesquisas lideradas pela equipe do biólogo Hussam Zaher, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, no Parque Nacional Serra das Confusões e na Estação Ecológica Uruçuí-Una – duas reservas localizadas nas proximidades da Serra Vermelha – indicam que a região abriga uma das maiores biodiversidades do interior nordestino, com espécies desconhecidas pela ciência.

Segundo os procuradores, Tranvanvan Feitosa e Carlos Guimarães, o Ministério do Meio Ambiente precisa rever o projeto e suas implicações ecológicas. "O Ibama desconsiderou a biodiversidade da Serra Vermelha e o potencial da floresta para o mercado de créditos de carbono, optando pela utilização mais fácil e de retorno imediato com a produção de carvão. No ritmo aprovado, as florestas do Piauí vão virar cinza em pouco tempo" afirmaram os representantes do Ministério Público Federal.

O deputado federal José Francisco Paes Landim (PTB), em discurso na Câmara dos Deputados, denunciou que o empreendimento estava destruindo uma área que futuramente poderia ser parte de uma reserva natural. O parlamentar enfatizou a necessidade de criação do Parque Nacional Serra Vermelha tendo em vista que "um grande desmatamento compromete a integridade da natureza e pode dificultar a intenção do governo brasileiro em criar essa nova unidade de conservação no Piauí". Já o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), solicitou que o presidente do Ibama, Marcus Barros, seja ouvido na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados para dar explicações sobre o caso.

A forte repercussão do impacto ambiental do projeto tem chamado a atenção dos veículos de comunicação do Brasil e do exterior. A maior emissora brasileira de televisão mandou seus repórteres para a região e uma equipe de tv italiana gravou reportagem sobre o caso. Em Teresina, a Fundação Rio Parnaíba, com apoio de várias ONGs lançou a campanha "ajude a salvar a Serra Vermelha" pedindo que as pessoas telefonem ou enviem e-mails para linha verde do Ibama solicitando a criação do Parque Nacional Serra Vermelha e a paralisação do projeto Energia Verde.

MANEJO POLÊMICO

O Projeto Energia Verde faz parte do Plano de Desenvolvimento da Bacia do Rio Parnaíba (Planap), através da Companhia de Desenvolvimento do Vale dos Rios São Francisco e Parnaíba (Codevasf). Aprovado pela Secretaria do Meio Ambiente do Piauí, é um empreendimento que comercializa lenha e carvão para atendimento da demanda energética de diversos setores da economia, tanto do mercado interno como para exportação.

A técnica de exploração utilizada é a do corte raso sem destoca em unidades de produção anual (UPAs) que terão 100% do material lenhoso acima de 2cm aproveitado. "Apenas 4,2% da área total é utilizada anualmente para desmate sob forma de manejo e as áreas de corte foram desenhadas de forma alternada para assegurar o fluxo da fauna", explicou Alessandro Fernandes, diretor da JB Carbon e filho do empresário João Batista Fernandes.

Liderado pela empresa carioca, o projeto está sendo executado no condomínio Chapada do Gurguéia, formado por mais de 30 propriedades. O negócio tem financiamento do Banco do Nordeste e ganhou isenção fiscal do Governo do Piauí por 12 anos. "Nosso objetivo era plantar soja, porém, terminamos convencidos a transformar o projeto num manejo florestal sustentável", explicou o engenheiro Elizeu Rossato Toniolo. "Firmamos parcerias com várias instituições, entre elas o Programa Nacional de Florestas e o Projeto de Conservação e Uso Sustentável da Caatinga" – um programa financiado pelo PNUD, órgão das Nações Unidas.

Apesar da polêmica envolvendo o projeto Energia Verde, o funcionário do Ibama e coordenador do programa de Conservação e Uso Sustentável da Caatinga, Francisco Campelo, aparece em informe publicitário da empresa JB Carbon promovendo o empreendimento que tem fins lucrativos. "Como funcionário público federal, principalmente de um órgão ambiental, ele não poderia defender um negócio que tem interesses comerciais", denuncia o presidente da Furpa. Por coincidência, o irmão de Francisco Campelo, engenheiro florestal Ricardo Campelo, é um dos responsáveis técnicos pelo empreendimento.

Além do apoio governamental, tanto na esfera federal através do Ministério do Meio Ambiente e Ibama ou via governo do Estado do Piauí, a empresa JB Carbon ainda conseguiu duas autorizações do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para prospectar minério de ferro nas proximidades da Serra Vermelha. A JB Carbon também aparece como uma das doadoras de recursos para campanha de reeleição do governador do Piauí, Wellington Dias (PT).

Em recente fiscalização na fazenda onde o projeto Energia Verde vem sendo executado, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-PI) encontrou uma série de irregularidades trabalhistas. A empresa foi multada em 50 mil reais por danos coletivos e obrigada a pagar cerca de 200 mil reais a título de indenização aos trabalhadores. Cada empregado vai receber cerca de R$ 1.400. Como a empresa alegou não dispor de numerário suficiêncte, os funcionários receberam R$ 100,00 em espécie e R$ 1.300,00 em cheques.

PARQUE AMEAÇADO

A criação do Parque Nacional Serra Vermelha pode ficar comprometido com o desenvolvimento do projeto Energia Verde. Com planos para desmatar 78 mil hectares, o empreendimento vai causar uma enorme ferida na mata. A densa floresta que cobre o lugar levou séculos para chegar em seu estágio atual. "O desmatamento vai descaracterizar sua formação, causando riscos e prejuízos em toda cadeia natural. Esses parâmetros não foram mensurados e, o mais grave, não existe projeto piloto que demonstre que a mata vai se regenerar", explicou o biólogo Francisco Soares.

Na área da botânica o lugar é um desafio para os pesquisadores. Não existe bibliografia sobre a região. Ocupada por formações de Caatinga arbórea – plantas com porte de árvores – que permanecem com sua copa verde o ano inteiro, o local também tem elementos do Cerrado e da Mata Atlântica, formando uma cadeia de alta diversidade biológica e importante funções ambientais numa região com reduzida interferência humana.

Pesquisas da Fundação Museu do Homem Americano, liderados pela arqueóloga Niéde Guidon, definem a Serra Vermelha como área de provável passagem dos povos pré-históricos que habitaram o Nordeste há mais de 50 mil anos. Pinturas e gravuras rupestres, muitas delas sequer catalogadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), podem ser encontradas na fronteira entre a Serra Vermelha e a Área de Proteção Ambiental do Rangel, uma reserva estadual com dezenas de sítios arqueológicos.

DESERTIFICAÇÃO PODE AUMENTAR

Segundo a ONU, a região de Gilbués, no Sul do Piauí, abriga o maior núcleo de desertificação da América Latina e um dos mais críticos do mundo. A pequena cidade de Gilbués é a mais afetada, ilhada pela erosão. Para o Ministério do Meio Ambiente, os municípios vizinhos de Monte Alegre, São Gonçalo do Gurguéia, Barreiras, Corrente, Riacho Frio e Curimatá também estão incluídos na área afetada pelo processo de degradação ambiental.

Teoricamente esses municípios deveriam ser assistidos tecnicamente pelos órgãos oficiais, controlando as interferências humanas e pesquisando suas características naturais. Ao contrário, a implementação do projeto Energia Verde no município de Curimatá parece contradizer todo esse diagnóstico. "O desmatamento nas chapadas da Serra Vermelha vai contribuir para o avanço do processo de degradação", confirma o biólogo Francisco Soares.

NOVAS ESPÉCIES

No passado, parte da América do Sul tinha um tipo de vegetação que hoje os cientistas chamam de Carrasco. São áreas no alto de chapadas, cobertas por uma mistura de floresta seca e relativamente densa com uma savana mais aberta – quase uma mescla de Cerrado e Caatinga. Em alguns lugareshouve contato entre essas formações e a Mata Atlântica. É o que parece ter acontecido na Serra Vermelha, sul do Piauí.

Recentemente uma espécie de cágado ainda desconhecida foi encontrada no local. O animal se encontra no Museu de Zoologia da USP sendo descrito por pesquisadores da equipe de Hussam Zaher. "A possibilidade de existir animais novos é muito alta", diz o biólogo Luis Fábio da Silveira, que esteve na região.

Somando-se a esse importante achado, a descrição de duas novas espécies de lagartos, o Stenocercus quinarius, no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, e Stenocercus squarrosus, no Parque Nacional Serra das Confusões, publicada na revista científica "South American Journal of Herpetology" confirmam a alta biodiversidade do Carrasco, rico em espécies endêmicas e com características geomorfológicas e de vegetação que o diferem das fisionomias típicas do Cerrado e da Caatinga.

Para os cientistas, o Carrasco pode ser o remanescente de um domínio anterior aos atuais, modificado por processos naturais – climáticos e geológicos. As duas novas espécies têm distribuição aparentemente restrita, ou seja, exclusivas de regiões especiais no Cerrado e seu contato com a Caatinga, áreas prioritárias para a conservação, revisadas recentemente pelo Ministério do Meio Ambiente.

"As áreas de Carrasco guardam informações biológicas antigas e únicas. Não se sabe quais as origens deste tipo de ambiente já bastante impactado", alerta Cristiano Nogueira, analista de biodiversidade da (CI). Segundo ele, a destruição da vegetação ressalta o risco que as novas espécies correm no exato momento em que "nascem" para a ciência: como todo o resto do Cerrado, da Caatinga e das Florestas Estacionais, seu habitat sofre com o desmatamento, que alimenta as carvoarias e o avanço da fronteira agrícola.

Fotos: Andre Pessoa

Pin It on Pinterest