Em algum lugar do passado

Um dia desses, numa conversa com o Marcos Sá Corrêa, comecei a contar uma história e ele me disse: “escreve”! Então, aí vai.

Alguns amigos têm brincado comigo, dizendo que eu estou proibida de visitar o Rio Uruguai e suas belezas, que ainda estão ao alcance dos olhos, das mãos e pés e dos corações. Falam isso porque os lugares pelos quais lutei, até agora, acabaram sendo inundados.

Seria realmente maravilhoso se essa fosse a chave da charada para salvar da inundação os lugares que estão ameaçados.

Eu juro que nem sequer ia querer ver as fotos desses lugares… Infelizmente, não é tão simples assim e eu não tenho este poder. Aliás, nem todos juntos, os ambientalistas que lutam por esses lugares, temos esse poder. Mas afinal, onde esta história toda começou?

Na passagem dos anos 1990 para 1991, um grupo de ambientalistas acampou às margens do Rio Uruguai, no ponto conhecido como Estreito, no limite entre Concórdia (SC) e Marcelino Ramos (RS). Queríamos chamar a atenção das autoridades para vários aspectos que estavam sendo deixados de lado na avaliação do Eia-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental) da hidrelétrica de Itá.

A obra não iria apenas inundar uma cidade inteira, mas também deixar debaixo d’água o Estreito do Rio Uruguai, monumento paisagístico inigualável – um lugar que em algumas épocas do ano podia ser atravessado com apenas um passo.

Dava ainda para fazer ali uma outra peripécia: ficar com um pé em Santa Catarina e outro no Rio Grande do Sul e todo o grandioso Rio Uruguai passando por uma enorme garganta debaixo de suas pernas.

E tudo isso por quê? Porque nem sequer se cogitou reduzir um pouco a altura da barragem e assim salvar das águas esses dois lugares. Na época também já se falava nas Dyckias, neste caso, a brevifolia e a distachya, que ficaram conhecidas e extintas da natureza, anos depois, em Barra Grande.

Transformação radical

Perdemos! E por que perdemos? Uma visita a Itá, ou melhor, a Nova Itá, no início de 2006, depois de todos esses anos, nos dá algumas pistas do motivo. Percorrendo as ruas maravilhosamente arborizadas da cidade, observando as casas construídas com perfeição, o planejamento e a organização de toda a estrutura e analisando o PIB do município, entende-se por que é tão difícil concorrer com o poderio econômico.

A cidade tem, além do lago, um parque aquático público com 13 piscinas, construído pela prefeitura. Fiquei com vontade de gritar: “Eu também quero morar em Itá!” Na verdade, nem sei se temos outras cidades desse nível no Brasil. É, meus amigos, dinheiro faz coisa.

A outra pista importante nos é dada quando constatamos que toda a história da cidade antiga – os usos do rio, as memórias – foi trabalhada de forma a não mais ser tratada como história, e sim como museu. Ou seja, virou uma história antiga e distante que a maioria foi induzida a esquecer. Ou então virou atração turística.

A igreja, da qual só sobraram as torres, tem uma pequena réplica no centro da cidade. As torres originais podem ser visitadas de barco ou apreciadas à noite, sob uma linda iluminação, às vezes azul, outras, verde. O estreito? Virou um banner no centro de “educação ambiental”. Ninguém mais quer saber da Itá antiga e eu não os culpo.

Para que não me acusem de estar exagerando ou então que me atribuam outros adjetivos menos benevolentes, basta citar como exemplo a cidade de Anita Garibaldi (SC), agora às margens do recém criado lago de Barra Grande.

Para quem quiser conferir, a cidade já exibe em suas páginas da internet um outro nome. Rapidinho deixou de ser a “cidade dos pinhais” para agora ostentar um nome mais pomposo: “cidade dos lagos”. As araucárias centenárias, além de inundadas, já foram varridas da memória num piscar de olhos.

E as Dyckias? Ah! Fomos visitar os exemplares resgatados em Itá. Na verdade, são duas toiças de distachya e brevifolia, meio amareladas, plantadas no horto, onde os abnegados encarregados tentam produzir mudinhas para a conservação ex situ, ou seja, fora de seu local original na natureza. Não há como ter certeza da sobrevivência das espécies no médio e longo prazo.

Com isso tudo, pudemos observar na prática a forma como são tratadas nossas espécies, principalmente as em risco de extinção: viram mudinhas para serem plantadas em outros lugares… E daí?

Inteligência circular

Com essas ações, pretendem nos calar dizendo que são “o máximo” o que conseguem fazer. Mudar um pouco os projetos das obras para salvar lugares e espécies, nem pensar. Tudo em nome da energia a qualquer custo. É importante deixar claro, mais uma vez, que não somos contra toda e qualquer obra de hidrelétrica, mas a inflexibilidade dos responsáveis com essas obras está fazendo com que se perca um patrimônio inestimável neste país. De que vai adiantar termos luz, se não tivermos mais nada de original para ver?

O que precisamos é poder dizer “não” para algumas obras e dizer “assim não” ou “aqui não” para outras. Isso seria bem mais razoável. Mas a dificuldade de ser razoável também tem explicação. Em recente audiência com a ministra da Casa Civil, tocando no assunto hidrelétricas, ela assumiu, às vezes como ministra das Minas e Energia, falando em alto e bom tom e sem possibilidade de manifestações contrárias que a única saída para o Brasil é a geração de energia hidrelétrica. De acordo com ela, a solar ocupa espaços enormes e a eólica é inviável. E ainda remendou: “é claro, também podemos optar pela nuclear…”.

Esse é o tipo de pensamento que eu resolvi chamar de inteligência circular porque fica dando voltas em torno de si mesmo, não consegue se expandir e nem ser estratégico. E o que isso tudo tem a ver com os outros lugares do rio Uruguai? O fato é que estão igualmente ameaçados e vamos precisar de toda nossa energia – não a das hidrelétricas, mas a interna – e a inteligência “inteligente” para podermos mudar o rumo dessa história.

Pois é. Fui à Ita e ainda não tive coragem de ir a Barra Grande. Mas com certeza irei e voltarei a Paiquerê, ao Yucumã (um dos maiores salto longitudinal do mundo) e a outros lugares preciosos, tantas vezes quantas forem necessárias, para que esses patrimônios sejam preservados das absurdas hidrelétricas planejadas na década de 70.

Dyckia distahya, a bromélia extinta da natureza

Uruguai, um rio em “estado de choque”

A bacia do Prata apresenta uma área de 3,1 milhões de km2 e tem o rio Uruguai como um dos seus três formadores. Situada em latitudes temperadas a sub-bacia do Uruguai apresenta uma área total de aproximadamente 365.000 km2 , dos quais cerca de 176.000 km2 estão em território brasileiro. 73,86% dessa área (130.000 km2) situa-se no Rio Grande do Sul e os 26,13% restantes (46.000 km2 ) no Estado de Santa Catarina. Ela integra o sistema da Vertente do Interior. A Serra Geral é o grande divisor das águas que drenam para o rio Uruguai e as que se dirigem para leste, atingindo o oceano Atlântico.

Na Vertente do Interior, a maioria dos rios apresenta perfil longitudinal e ocorrência freqüente de quedas d´água. Essa característica, além do diferencial paisagístico que imprime, representa também uma valiosa importância em potencial hidrelétrico.

O rio Uruguai tem sua nascente localizada na Serra Geral, numa área de Campos Naturais a cerca de 1800 m de altitude. Na sua nascente o rio é chamado Pelotas, assumindo a denominação de rio Uruguai a partir da junção com o rio Canoas, cuja nascente, por sua vez, também localiza-se na Serra Catarinense, numa bela região chamada Campo dos Padres. O rio Uruguai percorre 938 km até a foz do rio Peperi-Guaçú, e nesse trecho é a referencia geográfica da divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A partir do Peperi-Guaçu até a foz do rio Quarai , segue outros 689 km, agora estabelecendo a fronteira entre Brasil e Argentina.

O inegável potencial hidrelétrico dos rios da Vertente do Interior, notadamente na sub-bacia do Uruguai, tem gerado inúmeras expectativas de abertura de um novo pólo de riquezas. Após o esgotamento dos recursos madeireiros, completamente dilapidados no curto ciclo econômico madeireiro das décadas de 50 e 60, as empobrecidas comunidades situadas ao longo do rio Uruguai são seduzidas pelas promessas mirabolantes de enriquecimento rápido com a construção de usinas hidrelétricas. Só na região da Serra Catarinense existe projeto para a implantação de 17 novas usinas.

Essa perspectiva de aproveitamento do potencial hidrelétrico do rio Uruguai toma forma a partir dos estudos do Inventário da Bacia do Rio Uruguai, realizado pelo Comitê de Estudos Energéticos da Região Sul entre 1966 e 1969. Contudo, é a partir de 1976, diante das perspectivas de crescimento acelerado de seu mercado, que a ELETROSUL começou a voltar suas atenções para a bacia do rio Uruguai, o último grande bloco de energia hidráulica disponível na região sul. Promove-se então, em 1979, uma revisão dos estudos anteriores, culminando com um novo relatório: "Bacia Hidrográfica do Rio Uruguai – Estudos de Inventário Hidrenergético".

Esses estudos foram elaborados num período em que as grandes barragens e centrais hidrelétricas simbolizavam o ápice do desenvolvimento energético. Esses projetos eram vistos como grandes promotores do desenvolvimento, capazes de agregar usos múltiplos sem oferecer riscos ambientais. Desnecessário dizer que pouco mais de uma década foi suficiente para demonstrar a falácia desse discurso. Elevados níveis de eutrofização, descontrole do nível de assoreamento dos rios represados, alterações ecossistêmicas graves com eliminação de espécies e proliferação excessiva de outras, notadamente algas, macrófitas aquáticas, mosquitos e parasitas, são apenas alguns exemplos dos problemas rotineiros enfrentados pelos projetos implantados. Desnecessário também dizer que as ditas ações complementares, como criação de parques de recreação, unidades de conservação, área para aqüicultura, ficaram relegadas ao esquecimento.

Considerando todo o trecho do rio Uruguai entre a Serra Geral e a foz do rio Quarai, são 10 os projetos de aproveitamento hidrelétrico planejados desde o início da década de 80. Projeções similares igualmente foram feitas para os principais afluentes. No rio Canoas, por exemplo, já estavam previstas pelo menos quatro empreendimentos de porte significativo. Um desses empreendimentos, a UHE Campos Novos, praticamente concluído, é hoje motivador de sérios conflitos com a população atingida.

A recente polêmica criada com a discussão judicial acerca da instalação de outro desses empreendimentos, a UHE Barra Grande, fornece um bom referencial da absoluta fragilidade sócio-ambiental desses empreendimentos planejados no final da década de 70. Barra Grande é parte de um conjunto de empreendimentos que transformam a calha do rio Uruguai numa imensa escadaria. Iniciando na foz do rio Quarai com a UHE São Pedro. Essa "escadaria" tem seus primeiros degraus baixos e longos, e à medida que avança em direção a Serra Geral, os mesmos tornam-se gradativamente mais altos e curtos. Essa irregularidade nos "degraus" decorre das variações topográficas que se observam ao longo do trecho. Como essa seqüência de empreendimentos praticamente associa o final de um lago com o início do próximo barramento, é razoável admitir que nossos planejadores subordinaram não apenas as questões ambientais, mas também todos os demais possíveis usos desse patrimônio natural, ao interesse do aproveitamento hidrelétrico.

Ainda que essa condição seja suficiente para uma avaliação critica desse planejamento, é necessário lembrar que o mesmo foi elaborado num período em que os regramentos relativos ao controle ambiental eram ainda incipientes no país. A lei nº 6.938, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, surge em 1981, a exigência concreta da realização dos Estudos Prévios de Impacto Ambiental somente em 1986 com a Resolução CONAMA 01/86, a promoção do bioma Mata Atlântica a condição de Patrimônio Nacional é uma inovação da Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, e sua efetiva proteção é ainda regulada apenas por um decreto (Decreto nº 750/93); regras mais específicas para o licenciamento ambiental surgem em 1997 com a Resolução CONAMA 237, a instituição da Política e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos surge com a lei nº 9.433 em 1997, e só em 1998, com a lei nº 9.605, passamos a contar com uma "lei de crimes ambientais".

Esse rápido retrospecto é necessário para evidenciar a incoerência de um modelo que, mesmo projetado antes do advento dos principais instrumentos legais de proteção ambiental, pretende subordiná-los a ilógica e pretensiosa tecnocracia dos planejamentos de gabinetes.

Somente após a externalização do conflito criado com o processo de licenciamento da UHE Barra Grande, é que se revela na formalidade burocrática a necessidade de elaboração de uma avaliação ambiental integrada dos aproveitamentos de geração hidrelétrica planejados, em estudo, com concessão e em operação na Bacia do rio Uruguai. Essa exigência surge, contudo, no contexto de um Termo de Ajustamento de Condutas celebrado para viabilizar a operação da UHE Barra Grande. O referido TAC foi assinado em 15 de setembro de 2004, e nele fica estabelecido que o Ministério de Minas e Energia se responsabiliza pela promoção da avaliação ambiental integrada, dispondo para tanto de um prazo de 12 meses, prorrogáveis por igual período.

A avaliação do quadro atual, considerando a implementação do citado planejamento do setor elétrico brasileiro, nos fornece a clara percepção que, a despeito da profícua e rápida proliferação de instrumentos legais de regramento ambiental, no país ainda prevalece a lógica "desenvolvimentista inconseqüente", onde a geração de "riquezas" mesmo as expensas da dilapidação do patrimônio ambiental é a regra. Trechos da decisão proferida pelo Desembargador Vladimir Passos de Freitas na Suspensão de Execução de Liminar na Ação sobre a UHE Barra Grande, ilustram também a própria "subordinação" de setores do Poder Judiciário a cultura da supremacia do econômico. Entre outros aspectos, para fundamentar sua decisão o Desembargador considerou:

    "…é inconteste que o EIA e o RIMA continham incorreções quanto à descrição da qualidade da vegetação a ser suprimida…"
    "…de resto, impõe-se observar que a construção da hidroelétrica já implicou gastos públicos de monta e que seu funcionamento se revela indispensável ao desenvolvimento da ordem econômica…"
    "…Nesse contexto, a paralisação do empreendimento efetivamente causa lesão à ordem administrativa e à economia pública…" (Suspensão de Execução de Liminar nº 2004.04.01.049432-1/SC).

O certo é que o planejamento energético brasileiro jamais incorporou a dimensão sócio-ambiental, e mesmo com a aparente tomada de consciência global acerca dos desafios da conservação da natureza, e do avanço da legislação ambiental, o setor elétrico, desarticuladamente centrado na geração hidráulica, se apropriou do falacioso discurso "da energia limpa", conseguindo avançar um planejamento extemporâneo. Mais absurdo, consegue reverter aos propósitos desse planejamento caduco, as próprias conseqüências nefastas do modelo insustentável de desenvolvimento, usando o argumento de um pretenso "apagão", decorrente dos desequilíbrios climáticos, como justificativa não apenas para implementar o referido planejamento, mas também para receber do Estado todas as benesses, inclusive financiamentos públicos para instalação de empreendimentos privados, aliás a regra atual.

O setor energético reproduz assim sistemas de dependência e desarticulação, num Estado subdesenvolvido onde prevalece a lei do mais forte, e o mais forte é sempre quem tem, ou diz ter mais dinheiro. Amplia desse modo, ilhas de opulência, num cada vez mais revolto mar de pobreza. Nós brasileiros financiamos faraônicas obras de geração hidrelétrica para gigantes nacionais e multinacionais, como a Companhia Brasileira de Alumínio, Votorantim, Alcoa, entre outras, que dilapidam a biodiversidade e as nossas paisagens únicas, restando para a esmagadora maioria da população o consolo de conseguir um bom preço no "ecologicamente correto" negócio da reciclagem de latinhas.

O compromisso com o capital é tamanho que nem acordos e tratados internacionais se mostram eficientes contra a sanha devastadora do modelo energético vigente. Mesmo a extinção de espécies ou habitats insubstituíveis são facilmente negociáveis nas pródigas medidas mitigadoras e compensatórias, habilmente conduzidas pela próspera e inescrupulosa indústria dos EIA-RIMA.

O Setor Elétrico, com sua inegável eficiência, consegue ainda a façanha de elevar o Brasil a condição de Estado que, mesmo signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica, estabelece mecanismos para a autorização da extinção deliberada de espécies. Ao emitir a Licença de Operação da UHE Barra Grande, num momento em que a discussão sobre as inúmeras falhas no processo já se processava no Poder Judiciário, o IBAMA assume a responsabilidade formal pela extinção de uma espécie biológica, a bromélia Dyckia distachya, espécie essa que o próprio IBAMA já reconhecia como ameaçada de extinção desde 1992. Tudo para viabilizar a produção de energia barata para mover a lucrativa industria do alumínio, e não é por acaso que Companhia Brasileira de Alumínio e ALCOA figuram entre os principais acionistas da BAESA, o consórcio que construiu Barra Grande.

Num tempo em que, aparentemente tudo é possível, por que não incluir na programação da COP-8 um entusiástico relato do MMA noticiando a exclusão da Dyckia distachya da incômoda lista de espécies da flora brasileira ameaçadas de extinção. A partir de Barra Grande passa a ser injusto dizer que o IBAMA nada faz para alterar a condição de risco da biodiversidade brasileira.

João de Deus Medeiros é Professor Adjunto do Departamento de Botânica Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Membro das ONGs Pau-Campeche e Apremavi

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