Desde que o homem se viu impelido a buscar novos territórios além das savanas abertas, a floresta se constituiu em novo desafio à sua sobrevivência. Fruto de uma história evolutiva desvinculada da floresta, o homem precisou manejá-la, já que era mais rápido transformar a floresta do que aguardar um distante e incerto processo de co-evolução homem-floresta, o que de fato nunca ocorreu. Ao dominar o fogo, a inteligência humana se rende ao imediatismo, procurando então recriar suas pequenas savanas, as clareiras nas florestas. Um pouco mais tarde essa mesma inteligência também criou o machado, e as savanas foram se ampliando mundo afora.
Avançando para o norte gelado, a necessidade vital de calor cria uma nova condição propicia ao manejo da floresta: retirar dela o lenho que alimenta as chamas da sobrevivência. E o homem sobreviveu e evoluiu. As florestas se mostravam ora como obstáculo, gerando temeridade e pavor, ora como objeto de certa valia ao pragmatismo utilitarista.
No imaginário humano, a floresta sempre se mostrou como local escuro, perigoso, desconhecido, desafiador. Crescemos enquanto civilização, deliberadamente, distanciados da floresta. Nossos núcleos de convivência, desde os primeiros tempos, eram ambientes construídos, desnaturalizados. Por certo a complexidade da floresta, inviabilizando a sensação de domínio e controle, tão essenciais ao animal humano, foi uma determinante importante nesse processo de intolerância. Destruir a floresta era essencial para o desenvolvimento das sociedades humanas e, mais tarde, com a estabilidade dos primeiros povoamentos, sinônimo também de posse e domínio da terra. O avanço tecnológico propiciou oportunidades novas, encorajando o homem a avançar a passos largos sobre o território selvagem, desbravando-o. Bravos eram os pioneiros que enfrentavam a floresta. Esse modelo de manejo sequer pode se associar à exploração de recursos naturais, já que pouco ou quase nada era aproveitado. O objetivo maior era abrir espaço para a civilização. A civilidade não se compatibiliza com a floresta, dualismo quase perenizado no paradoxo da evolução humana.
A natural inabilidade humana com as florestas fez com que as áreas de florestas tropicais se mantivessem quase intactas até passado recente. Historicamente se observa um paralelo entre grandes civilizações e áreas abertas e, mais recentemente, com áreas de florestas temperadas, estruturalmente menos complexas, portanto mais fáceis de “manejar”. A história nos mostra também que o ciclo de crescimento e declínio de todas as ditas grandes civilizações associa-se diretamente ao esgotamento dos recursos naturais por elas explorados de forma predatória. A história trata dos feitos, ambições e frustrações humanas, a natureza, se muito, se insere na história como cenário. As florestas tropicais não fugiram a essa regra na sua “convivência” com os humanos. Mesmo na América do Sul, o último rincão a ser invadido pelo homem, como relata Warren Dean, “os que tombaram ainda jazem insepultos e os vencedores ainda vagueiam por toda parte, saqueando e incendiando o entulho”.Mais uma vez a história da floresta é um relato de exploração e destruição.
No contexto das florestas tropicais, a Mata Atlântica é um exemplo da eficiência destruidora da espécie humana. Há cerca de 65 milhões de anos, as angiospermas, que dominam as florestas tropicais, chegaram ao dossel e, nos últimos 50 milhões de anos, a diversificada teia de vida da Mata Atlântica tem evoluído sem a pressão de grandes transtornos geológicos. Contudo, a chegada do homem às planícies sul-americanas há cerca de 13 mil anos inicia um processo de interferência sem precedentes, mais devastador do que as próprias “catástrofes” geológicas. Um dos resultados mais imediatos, aventa-se, foi a onda de extinção da megafauna. Na seqüência, avança o homem sobre a floresta, criando distúrbios que, de certa forma, se diluíam na efervescência de formas de vida e na magnífica favorabilidade das condições desse último período interglacial. Isso ajudou a construir o mito do “bom selvagem”. Essa condição mais uma vez é abruptamente rompida com uma nova leva de colonizadores. Aportando suas naus numa costa ampla e exuberante, o colonizador europeu logo colocou a desserviço da floresta toda a sua tecnologia. A eficiência foi tamanha que em cinco séculos “manejando” a Mata Atlântica, com o providencial apoio da metalurgia, o invasor europeu conseguiu subverter a lógica natural e num ambiente com todos os requisitos necessários para a exuberância, reduziu tudo a “paisagem” e a “espaço”.
Texto de João de Deus Medeiros, do Departamento de Botânica (CCB-UFSC) e do Grupo Pau-Campeche
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Conheça as diferentes fitofisionomias do bioma
A Lei da Mata Atlântica
A importância da Mata Atlântica passou a ser amplamente reconhecida no final da década de 1980, quando foi declarada Patrimônio Nacional pela Constituição Federal de 1988. O Projeto de Lei em sua defesa gerou muitas discussões e tramitou no Congresso Nacional por 14 anos. Os anos de luta em defesa da Mata Atlântica culminaram na conquista histórica de uma legislação própria para o bioma que finalmente foi aprovada e sancionada em 22 de dezembro de 2006, sob o número 11.428. Saiba mais sobre essa história e a Lei da Mata Atlântica (11.428/2006) abaixo.
Linha do tempo da criação da Lei da Mata Atlântica
Atlas da Mata Atlântica
Publicado regularmente pela Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica monitora a vegetação nativa do bioma desde 1989. Os estudos monitoram, atualmente, fragmentos florestais mais preservados, maiores que 3 hectares, com dossel de copas fechado e sem sinais de degradação – como estradas e solo exposto – a partir de interpretação visual de imagens de satélite Landsat. Estes são os fragmentos considerados em melhor estado de conservação ou florestas mais maduras, com maior biodiversidade e estoque de carbono.
Nunca é demais recordar que este é o único bioma brasileiro protegido por uma lei especial, a Lei da Mata Atlântica, e o primeiro a ser monitorado por imagens de satélite desde o lançamento do Atlas dos Remanescentes Florestais. Pela importância da Mata Atlântica, devemos garantir a proteção e o desmatamento zero das florestas nativas e incentivar a sua conexão com a restauração da mata.