Castigo e Crime em Terras Catarinenses

A catástrofe que assolou Santa Catarina, deixando comovente rastro de destruição, presente na memória de tantos brasileiros, torna de difícil compreensão a iniciativa perpetrada pelo Governador do Estado que remete ao legislativo um projeto de lei flagrantemente inconstitucional, solapando regramentos da legislação de proteção ambiental. Mais enigmático foi a aprovação, rápida e sem registros de contrariedade, por parte dos membros do poder legislativo catarinense.

Não há como deixar de recorrer a clássica obra de Fiódor Dostoiévski, já que o episódio de imediato nos remete a uma percepção, ainda que enviesada, similar aquela assumida por alguns de seus personagens. Parece que aos parlamentares e centenas de agricultores que se aglomeravam no plenário da Assembléia, o castigo prévio da catástrofe ambiental, de certa forma, lhes facultava e legitimava o crime. Na ficção Dostoiévski narra:

"Esse crime ínfimo não seria atenuado por milhares de boas ações? Por uma vida _ milhares de vidas salvas do apodrecimento e da desagregação. Uma morte e cem vidas em troca – ora, isso é uma questão de aritmética. Aliás, o que pesa na balança comum a vida dessa velhota tísica, tola e má? Não mais que a vida de um piolho, de uma barata, e nem isso ela vale porque a velhota é nociva. Ela apoquenta a vida dos outros".

Na vida real ouvimos a exaustão o argumento utilitarista de que preservar a natureza, ou melhor, manter preservado aquele mínimo exigido pela legislação, significa penalizar milhares de agricultores que deixarão de produzir nessas áreas e, consequentemente, deixar de auferir lucros. Eliminar as ditas APPs, nesse cenário, é um crime ínfimo, já que, dizem os deputados, todos sabemos que as tais APPs apoquentam a vida de muita gente. Mas, não sejamos ingênuos, a velhota tísica, tola e má, e que precisa ser sacrificada em nome do bem comum, é a nossa jovem Constituição Federal, e com ela a democracia.

Poderíamos repetir, no afã de dissuadir deputados, o surrado refrão das calamidades decorrentes da degradação da natureza. Não funciona. Apesar da cantilena de serem diferentes do resto do país, catarinenses, deputados ou não, são tão comuns quanto os demais “brasilianos”. E aí, nos ensina Garrett Hardin, reside a tragédia. Num país tão grande, e com tanta floresta, não é a mordidinha dada pelos catarinenses que vai fazer o planeta explodir, pensam os mais comuns.

Como pretensos adeptos da ética utilitarista de Jeremy Bentham, onde “cada indivíduo só pensa em si mesmo, preocupa-se mais com suas vantagens do que com as dos outros”, se comportam os aguerridos defensores da proposta do Governo Estadual. Os deputados, demagogos contumazes, comportaram-se de forma absolutamente previsível. Cientes de que “o poder só se deixa agarrar por aquele que ousa inclinar-se e tomá-lo”, melhor não contrariar os suicidas, eles resistiram a tragédia e por certo votarão nas próximas eleições. A estúpida estratégia da “abstenção”, adotada por alguns, insere-se na mesma lógica, porém com uma dosagem adicional e generosa de hipocrisia. Necessário um reparo, estamos sendo injustos com Bentham.

Já no final do século XVIII, registrada aqui sua precoce genialidade, Bentham com seu radical utilitarismo ocupou-se de questões éticas como a pobreza, o sofrimento e a justiça, posicionando-se em favor da eliminação da miséria e da diminuição do sofrimento humano através da criação de mecanismos com os quais se procura realizar um certo conceito de justiça social. Com notável criticidade se opôs aos “revolucionários franceses”, panfletários do ilusionismo que afirmavam os direitos universais do homem. Bentham, séculos antes de Hardin já nos alertava que o indivíduo somente possui direitos na medida em que conduz suas ações para o bem da sociedade como um todo, e a proclamação dos direitos humanos, tal como se encontra nos revolucionários franceses, seria demasiado e levaria ao egoísmo. Este, segundo Bentham, já é muito forte na natureza humana. Assim, o que deve realmente ser procurado é a reconciliação entre o indivíduo e a sociedade, mesmo que seja necessário o sacrifício dos supostos direitos humanos.

Feito o devido reparo, fica a constatação: para agricultores egoístas e parlamentares inconsequentes sequer cabe a menção de utilitaristas, seria um equívoco imperdoável. A insensatez dos parlamentares, por outro lado, os remete para a marginalidade, senão vejamos:

A Constituição Fedral (CF) de 1988 estabelece que a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (Art. 37).

Antes da votação havia farta documentação atestando a ilegalidade da proposta, inclusive manifestações de representantes do Ministério Público; muitos foram os deputados que justificaram o voto no fato de estarem beneficiando pessoas que não resguardaram observância as leis vigentes; o posicionamento consciente de afronta as leis e a constituição é imoral; e por fim, a aprovação do PL não resguarda qualquer eficiência, pois a Assembléia Legislativa não tem competência para revogar dispositivos constitucionais, ou mesmo leis federais.

A CF sabiamente confere garantia ao direito de propriedade, não negligenciado, contudo, o necessário atendimento a sua função social. Tudo devidamente previsto no artigo 5º da Carta Magna. Já no artigo 186 há a previsão de que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Considerando a manifesta ilegalidade do Código Ambiental de SC, aquele proprietário que por ele pautar suas ações estará sujeito a perder sua propriedade. Isto porque, não cumprindo os dispositivos da legislação federal estará utilizando de forma inadequada os recursos naturais e comprometendo a preservação ambiental. Logo, comprova-se cabalmente que a propriedade não cumpre sua função social. Configurado o quadro, cabe a União promover a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, pois assim determina a CF no seu artigo 184. Não consta que deputados catarinenses tenham alertado os incautos agricultores das eventuais conseqüências de se pautar pela ilegalidade. A classe política atual, a propósito, tem demonstrado extremo desprezo em relação ao destino da nação, preocupados que estão mais com se servir da coisa pública. Como consolo, lembramos aos agricultores defensores do código que a CF também determina que as benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas.

A insanidade do Governador e dos parlamentares catarinenses é ainda mais evidenciada quando lembramos que Santa Catarina é um Estado originalmente coberto pela Mata Atlântica, aplicando-se no caso também os dispositivos da lei federal nº 11.428/06. Isso porque a CF definiu a Mata Atlântica como patrimônio nacional, determinando expressamente que a sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais (Art. 225, § 4º).

O mesmo artigo 225 da CF incumbiu ao poder público, entre outros afazeres, definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. O Governador de SC não apenas se desvencilhou desta obrigação ao propor o Código Ambiental, como também usurpou essa competência dos 293 prefeitos municipais, que agora não mais terão a autonomia conferida pela CF para criar áreas protegidas nos seus municípios. Friedrich Wilhelm Nietzsche, para quem toda ação é egoísta e a compaixão perversa, também nos dizia que a falta de consciência é uma forma de insanidade. Assim, não nos causa estranheza que na mente dos deputados catarinenses se estabeleça que o Presidente da República não mais disponha da prerrogativa constitucional para criar áreas protegidas no Estado. Sepultada no legislativo a república, surge em SC a reprivada, onde sem qualquer pudor se esbanja o dinheiro do contribuinte, obviamente sem compaixão.

Vale registrar que a CF estabelece que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. Queremos com isto lembrar que o ato perpetrado pelo governador e deputados catarinenses é uma ameaça a democracia, porém não necessariamente a fragiliza. Ao contrário, uma vez restabelecida a prevalência do Estado de Direito e do império da lei, ainda que pelo caminho da justiça, fortalecida sai a democracia, pois demonstrado fica que mesmo os abusos do Estado nela são intoleráveis. Colocá-la a prova pode render bons frutos.

De toda forma, é lastimável e deveras negativo para a democracia o flagelo da autodesmoralização da classe política. E para corrigir isso não há judiciário que dê conta, restando ao eleitor fazer justiça com as próprias mãos: políticos que demonstram incapacidade para cumprir a missão que lhes foi delegada não podem ser reeleitos.
No estado essa missão significa agora reformular também todo o legislativo, porém ficou mais simples: em tempos de urnas eletrônicas, podemos fazer justiça usando apenas um dedinho.

Num quadro político tão anacrônico, aplicar a Teoria dos Castigos e das Recompensas, que Bentham já nos legou nos idos de 1811, pode ser demonstração de que a modernidade enfim chega a política catarinense.

Apesar de código ambiental, leis federais continuam valendo em SC

Dia 31 de março de 2009 a Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina cometeu um dos maiores crimes contra o meio ambiente e, por conseqüência contra a vida da nossa gente. Após seis meses de tramitação o PL nº238/2008, batizado de “Código Ambiental Catarinense”, recheado de ilegalidades e inconstitucionalidades, foi à votação e aprovado por 31 votos a favor, com 07 abstenções.

Foi uma sessão bastante tumultuada, onde o dito “setor produtivo” leia-se: latifundiários, donos do agronegócio e madeireiros, escudados por milhares de pessoas devidamente “custeadas” e em sua maioria iludidas e mal informadas, praticamente lotaram os espaços da Assembléia, com o objetivo de pressionar e intimidar os parlamentares que ainda não estavam cooptados.

Os ambientalistas também se fizeram presentes e, embora em número menor, até porque não dispõem de recursos nem de financiadores para se deslocarem, com muita altivez, cumpriram o seu papel de ainda e até na última hora, tentar convencer os Deputados para não cometerem o equívoco histórico que, não obstante, acabou acontecendo.

Além da presença da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi), destacamos entre os ambientalistas, representantes das ONGs Ipereté de Lages, da Acaprena e da Esquilo Verde de Blumenau, do Comitê da Bacia do Rio Itajaí, de vários dirigentes sindicais, vereadores, agricultores e do Movimento por um Código Ambiental Legal (Movical).

Também estavam reforçando o coro dos que lutam pela não repetição das tragédias de novembro de 2008, alunos e professores do curso de biologia da Fundação Universitária de Blumenau (FURB), que com cartazes e faixas alertavam sobre as conseqüências da aprovação do código: falta de água; enchentes; assoreamento dos rios; deslizamento de encostas e margens de cursos d´água; degradação do que resta da Mata Atlântica; prejuízos econômicos; perda de vidas humanas…

Com o mesmo intuito foram distribuídos para os Deputados e jornalistas, exemplares do informativo “Santa e Frágil Catarina”, editado pela Apremavi, com depoimentos de técnicos e pessoas de diversos setores, contrários ao código proposto. Nesse informativo constam, além dos depoimentos, informes técnicos e dados sobre as reais causas da tragédia que se abateu em nosso estado, particularmente e especialmente no Vale do Itajaí – desmoronamentos; soterramentos de casas com famílias inteiras dentro; centenas de mortos e desaparecidos; milhares de desabrigados; assoreamento do rio que, inclusive, paralisou por meses o funcionamento dos portos de Itajaí e Navegantes, suas respectivas maiores fontes de receita. Destaca-se que a maioria das casas atingidas estava construída nas áreas de preservação permanente ao longo de rios e riachos e encostas de morros, áreas essas que são APP e, ao mesmo tempo, áreas frágeis e de risco.

O fato é que todos os dias são divulgadas novas comprovações de que as mudanças climáticas estão afetando seriamente a vida das pessoas. Uma das chamadas do Boletim do Departamento de Águas e Esgotos (DAE) de São Paulo, do dia 01 de abril de 2009, anuncia “Aquecimento global aumenta enchentes em São Paulo”. O texto da matéria afirma: “estima-se que hoje o número de dias num ano com chuva acima de 10 milímetros já seja 12 a mais do que a média. Somando isso às novas projeções, o Sudeste ganhará quase um mês de chuva extrema no ano”. Para quem acompanha os noticiários, esses fatos são facilmente visíveis.

Por esses motivos, para os ambientalistas que não são “surdos ambientais” e tem responsabilidade com a vida, a sessão do 31 foi torturante. Dos muitos disparates proferidos na ocasião pelos deputados defensores do projeto estão as afirmações de que: “as enchentes e desmoronamentos nada tiveram a ver com as questões ambientais”; que “o homem é que domina o meio ambiente e não o contrário”; que “preservar 30 metros de Mata Ciliar conforme a Lei Federal prevê, causa maior tragédia que as enchentes e enxurradas”; que “5 metros de APP são suficientes em Santa Catarina, dadas suas características diferentes” e que “mais do que isso inviabiliza economicamente a maioria das propriedades”, justificando a sua aprovação.

Pior ainda ouvir de Deputados, representantes públicos que deveriam estar à serviço dos verdadeiros interesses da coletividade, pregações explícitas de desobediência civil, em suas defesas por um código que afronta a legislação federal. Pura demagogia para benefícios eleitoreiros.

Fica aqui um importante alerta aos proprietários rurais. Não se deixem enganar pelos que dizem que com a aprovação desse código ambiental às avessas, que deverá ser objeto de várias ações de inconstitucionalidade, a legislação federal poderá ser descumprida. O Código Florestal Federal continua valendo em território catarinense.

A Apremavi continua fazendo um alerta de que flexibilizar ainda mais o uso das Áreas de Preservação Permanente (APPs) aumentará a chance de uma futura catástrofe. Usamos o termo flexibilizar ainda mais, porque ao contrário do que tem sido dito pelos ruralistas, já existem inúmeras flexibilizações na legislação, permitindo o uso de APPs na pequena propriedade, entretanto desconhecemos qualquer iniciativa por parte desses setores em aplicá-las.

A Apremavi trabalha há mais de 20 anos com a recuperação de APPs e planejamento de propriedades e paisagens e se orgulha das parcerias que tem com agricultores que provam na prática que a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais valorizam sobremaneira as propriedades e seus produtos e contribuem de forma decisiva para o aumento da qualidade de vida na área rural.

Pouco adiantarão os lamentos que virão depois. O momento é agora. Garantir um desenvolvimento sustentável, com criatividade, com o trabalho digno e bonito que o povo catarinense sabe fazer. Temos que garantir sim o sucesso na produtividade agrícola, mas cuidando das nascentes, dos rios, das encostas, da diversidade das nossas florestas e dos animais, garantindo aos nossos filhos e netos a oportunidade de nascerem e viverem num ambiente saudável.

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A responsabilidade com a vida

O mundo hoje assiste a muitos desastres que poderiam ser evitados ou minorados: a escassez de água potável, o aquecimento global, o desaparecimento de espécies. O ser humano continua a destruir a terra que o alimenta e o rio que mata sua sede. A sociedade humana continua a imaginar que tais recursos são infinitos.

Em Santa Catarina a insensatez de construir em áreas de preservação permanente e de arrancar as florestas de proteção de montanhas e de cursos d’água resultou, recentemente, em morte e sofrimento de seres humanos que talvez não soubessem que estavam ocupando áreas que deveriam protegidas. Isso porque os órgãos públicos, que deveriam informar sobre tal proteção e fiscalizar as atividades urbanísticas e agrícolas, não agiram.

Aprovar legislação que permite construções em áreas de grande declividade e à beira de rios ou nascentes é bem mais do que falta de bom senso: é assumir a responsabilidade pelas vidas que poderiam ter sido salvas e que se perderam.

Os levantamentos realizados em Blumenau e no tristemente lembrado Morro do Baú, indicam que a supressão da vegetação nativa e a ocupação das áreas de preservação permanente com construções e com reflorestamentos com espécies exóticas foram os principais responsáveis pelo enormidade da tragédia de 2008. O excesso de chuvas pode matar, mas mata mais em áreas de risco e em locais degradados.

Qual a resposta das autoridades catarinenses?

Alguns meses depois de tanta tragédia, na capital onde em todo verão falta água potável e metade das praias está poluída por coliformes fecais, discute-se o projeto de lei do Código Ambiental de Santa Catarina. Com qual finalidade? Proteger os rios e as florestas, assim protegendo a vida? Proteger o patrimônio natural de todos e a perene possibilidade de produzir alimentos e riquezas? Não exatamente.

Para melhor compreender a questão, faz-se necessário um pequeno resumo da estória do projeto de lei aqui comentado.
Como muitos sabem, Santa Catarina possui um importante remanescente da Floresta Atlântica, considerada como uma das mais importantes para a diversidade biológica de todo o planeta e Reserva do Patrimônio Natural da Biosfera (UNESCO).

Exatamente para ajudar o Estado a proteger o que resta de tal floresta, uma agência alemã vem colaborando financeiramente com projetos da Fundação Estadual do Meio Ambiente – a FATMA. É doação: dinheiro que infelizmente não evitou que o Estado fosse considerado o maior desmatador de mata atlântica nos últimos anos.

Pois bem, a FATMA propôs aos alemães o custeio da elaboração de um anteprojeto-de-lei de código ambiental, sob o argumento de que tal legislação seria importante para proteger a mata atlântica (!).
Aprovada a proposta, técnicos da Fundação e consultores contratados trabalharam e discutiram as diversas regras legais que  deveriam constar do novo documento. Também discutiram com alguns segmentos da sociedade (não com o Ministério Público). O documento foi levado com festa ao Palácio do Governo. Segundo afirmam os técnicos da FATMA, lá foi trocado por outro, o qual foi encaminhado à Assembléia Legislativa.

O projeto de lei, portanto, tem origem estranha, não serve ao objetivo de proteção ambiental e diverge, em pontos essenciais, da Constituição e da legislação federais, bem como afronta a Constituição do Estado de Santa Catarina.

A Constituição Federal, além do capítulo de proteção ao meio ambiente – inspirado em textos semelhantes das constituições modernas do mundo -, também define expressamente, em seu artigo 24, a competência concorrente da União e dos Estados  para a elaboração de leis ambientais. Havendo legislação federal, portanto – é o caso do Código Florestal, da Lei da Mata Atlântica, da Lei do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e da Convenção da Biodiversidade, entre outras -, a legislação estadual pode apenas complementá-la, sempre de forma mais protetora. Em resumo: regras estaduais menos protetoras do meio ambiente do que as regras federais  não tem validade, não podendo gerar efeitos.

Assim, dizer que futuro Código Ambiental de Santa Catarina vai legalizar o desmatamento de áreas de preservação, é induzir em erro a população. Como também é induzir em erro não esclarecer aos agricultores e pecuaristas catarinenses sobre todas as possibilidades de utilização e de manejo produtivos das reservas legais, áreas de preservação permanente e remanescentes de mata atlântica, especialmente a partir da regulamentação do Código Florestal pela Resolução 369 do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA.

A mistificação que vêm sendo feita é impressionante, notadamente através de publicações na imprensa. A falta de exatidão é tanta que em um único texto pode-se facilmente chegar a contas absurdas de até 160% do território catarinense!! Em outro texto afirmou-se que 35% das margens de rios catarinenses não possuem qualquer vegetação de proteção. Isso quer dizer que 65%,  ou seja, a maioria dos homens do campo, preservam o meio ambiente e continuam  produzindo (é esse o bom modelo).

E porque o Estado não auxilia os demais a regularizarem sua situação, incentivando a recuperação com espécies que possam ser economicamente aproveitadas e estabelecendo áreas para dessedentação de animais e para outros usos típicos e permitidos das margens dos cursos d’água? Por que não investir realmente em ajudar a população do campo? Por que não investir em um futuro viável para todos? Por que não aproveitar a oportunidade e criar incentivos fiscais para a preservação dos recursos naturais, como o ICMs ecológico e o pagamento pela preservação?

Há exemplos importantes de atuação sustentável no Brasil: São Paulo anuncia um grande investimento para despoluir litoral e nascentes, ao tempo em que proliferam outros programas de apoio técnico e de incentivo à recuperação florestal.

A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) indica que o número de pessoas com problemas para conseguir água chegará a 3,9 bilhões em 2030, isto é, metade da população do mundo. Um exemplo desse problema é visível no oeste catarinense, onde são necessários poços de grande profundidade para buscar a água que não existe mais na superfície (desmatou-se, matando rios e nascentes!).

No dia 28 de março do corrente cerca de 1 bilhão de pessoas participaram da “Hora do Planeta”, um ato simbólico para demonstrar sua preocupação com o aquecimento global e as mudanças climáticas.
Vamos esperar que os legisladores catarinenses dêem sua contribuição, afastando do projeto do Código Ambiental as regras da degradação.

Código (Anti) Ambiental de Santa Catarina

Transcorridos pouco mais de três meses das catástrofes que assolaram o estado de Santa Catarina, em razão das fortes enxurradas e dos descuidos do homem com o meio ambiente, provocando enchentes de toda ordem, deslizamentos de encostas, dezenas de mortos e milhares de desabrigados, além de gigantescos prejuízos econômicos ao Estado, parece que a tragédia sensibilizou o Brasil e o Mundo, mas não a maioria dos deputados catarinenses, determinados que estão para a aprovação do Código Ambiental Estadual, PL 0238.0/2008, prevista para o próximo dia 31 de março na ALESC.

Das inúmeras alterações realizadas pelo Governo do Estado à minuta inicialmente elaborada por representantes de diferentes segmentos da sociedade civil, entidades públicas e privadas, a mais grave e perigosa de todas as alterações, sem sombra de dúvidas, está na redução das matas ciliares situadas às margens dos cursos d’água, de 30 para 5 metros. A mobilização do setor produtivo, com o apoio explícito do Governo é enorme e bem articulada, confundindo significativamente a opinião pública.

O argumento utilizado é o prejuízo econômico que as áreas de preservação permanente- APPs, situadas ao longo dos rios, ocasiona com a perda de área produtiva na pequena propriedade rural. Segundo informações do Levantamento Agropecuário Catarinense – LAC, 89% das propriedades agrícolas catarinenses são minifúndios de até 50 hectares, representando aproximadamente 167.000 propriedades rurais distribuídas em solo catarinense.

E o argumento é que uma parcela destes está sendo economicamente afetada pelas regras ambientais vigentes. Porém, o que poucos sabem é que, também segundo dados do LAC, dos aproximadamente 6.000.000 de hectares que servem à produção agrícola do Estado, 32,52%  pertence a apenas 1,9% dos proprietários rurais, detentores de grandes latifúndios. Este dado deixa explícito que os principais interessados (e beneficiados) com a mudança legislativa não são os pequenos agricultores (que representam 45,68% da extensão fundiária), e sim os grandes.

Com a lei, toda a sociedade catarinense abdicará para sempre de boa parte deste importantíssimo bem ambiental que a todos pertence (as matas ciliares), cuja função prioritária está na preservação dos recursos hídricos, essencial à sobrevivência humana, renúncia esta que servirá, de forma especial, a uma minoria economicamente privilegiada. É justo que isso ocorra? O que poucos sabem, pasmem, é que o pequeno agricultor familiar, e somente ele, em vista do reconhecido interesse social da sua atividade, já possui autorização legal, pelo próprio Código Florestal (lei 4.771/65) que se pretende revogar, para economicamente utilizar as áreas de preservação permanente, desde que o faça mediante um sistema de manejo agroflorestal sustentável.

Na realidade, nem o Poder Executivo Estadual, nem o Setor Agroindustrial, em vista da redação do art. 115 do projeto de lei, demonstram empenho em contornar o problema pelo caminho da legalidade, estímulo à utilização responsável destas áreas ecologicamente importantes e geração de fontes alternativas de renda ao pequeno agricultor. Aliás, no sistema de integração é fato sabido que desinteressa às agroindústrias que os seus integrados tenham outras fontes de renda. A absoluta relação de dependência faz e sempre fez parte do negócio. Também é importante que a população saiba que o Ministério Público, com razoabilidade e responsabilidade sócio-ambiental, de forma pontual, há anos, juntamente com a FATMA e outras entidades, mostra-se sensível à causa.

O auxílio vem sendo prestado a milhares de pequenos agricultores com a facilitação da obtenção dos licenciamentos ambientais através de termos de ajustamento de condutas- TACs,  que vem sendo firmados e renovados com os diferentes setores produtivos (suinocultura, avicultura, rizicultura, fruticultura, dentre outros), voltados à regularização ambiental de situações consolidadas. Esses ajustes, em sua maioria, fixam a extensão das matas ciliares a serem protegidas em 10 metros, e não 30 como afirma o setor produtivo, mediante o cumprimento de outras exigências ambientais importantes, com especial destaque para o tratamento e destinação  adequada dos resíduos da produção.

É revoltante que projetos de lei voltados a instituição de incentivos fiscais ecológicos, assim como outras iniciativas de estímulo à preservação ambiental e à sustentabilidade da própria atividade econômica continuem sem vez na Assembléia Legislativa. Se o Código Ambiental Estadual for aprovado com a atual redação, constituir-se-á numa aberração jurídica, eis que afrontará o Estado Constitucional de Direito em desrespeito às regras de competência previstas nas Constituições Federal e Estadual, como bem sabem os senhores Deputados, além de apresentar vício de legitimidade, eis que a sua redação atual não possui o amplo respaldo social, mas principalmente de um segmento, que é o setor produtivo.

E afetará também, de forma direta, a geração presente, tornando-a ainda mais vulnerável às intempéries climáticas, estimulando a ocorrência de novas catástrofes, possivelmente com maior envergadura que as já ocorridas, considerando a importância das matas ciliares na contenção de enchentes em face das previsíveis enxurradas que estão por vir.

Acredito que ainda haja tempo para uma mobilização e forte reação social voltada à reversão do quadro grave que se anuncia e sensibilização de nossos representantes, dispensando complexas batalhas judiciais, desgastantes e custosas aos cofres públicos.   Ou aguardemos, mais uma vez, as conseqüências catastróficas de nossa passividade.   

Luis Eduardo Souto é Promotor de Justiça e Coordenador-Geral do Centro de Apoio Operacional do Ministério Público de Santa Catarina. O artigo acima foi apresentado no Seminário "Ambientalis 2009", realizado em Chapecó de 17 a 19.03.2009, na palestra "Código ambiental de Santa Catarina".

Exemplo de que APP bem conservada ajuda a conter os impactos de enchentes e enxurradas. Ribeirão Garcia em Blumenau, com matas cilicares intactas após a catástrofe de novembro de 2008. Foto: Miriam Prochnow.

Apremavi apoia Movimento por um Código Ambiental Legal

O Movimento por um Código Ambiental Legal (MOVICAL) é uma integração de várias organizações que buscam uma discussão democrática do Projeto de Lei 0238/2008, que tramita na Assembléia Legislativa de Santa Catarina e que pretende instituir o Código Estadual do Meio Ambiente.

O MOVICAL começou nas audiências públicas, promovidas em todo o Estado em novembro de 2008, quando, sob vaias, diferentes grupos e entidades se manifestaram sobre diferentes conteúdos do PL. Houve um grande clamor por parte de técnicos, pesquisadores e ambientalistas, que se esta lei fosse aprovada, apesar do nome Código Ambiental, aumentaria ainda mais o quadro de degradação e vulnerabilidade socioambiental.

A iniciativa conta com um site específico onde podem ser acessados inúmeros artigos importantes sobre a questão, como o  SOS Legislação Ambiental, já publicado no próprio site da Apremavi.

O movimento busca ainda o apoio da população e de organizações da sociedade civil através de um abaixo-assinado, solicitando que o código atenda os parâmetros legais estipulados pela Constituição Federal de 1988: manutenção de um ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

O MOVICAL alerta para a importância da iniciativa, levando em conta principalmente, que poucos dias depois da última audiência, Santa Catarina foi vítima de uma grande catástrofe sócio-ambiental. Ainda assim, o plano da Assembléia Legislativa, que fez o questionado Projeto de Lei tramitar em regime de urgência, era votar o Código Ambiental em 18 de dezembro. Os setores e grupos interessados na alteração de determinados pontos do projeto passaram a se articular no sentido de prorrogar o prazo de votação do PL.

A discussão ganhou novo fôlego no início de dezembro, quando as comissões parlamentares decidiram ampliar o prazo para a apresentação de emendas até 27 de fevereiro de 2009, e marcar a votação para 31 de março. Parte desta vitória pode-se creditar à publicação de um artigo no Diário Catarinense no dia 29 de novembro, subscrito por professores da UFSC, UNIVALI, FURB e UNESC e representantes de organizações como a Associação Brasileira de Recursos Hídricos, CREA/CONSEMA e do Núcleo de Estudos em Serviço Social e Organização Popular – NESSOP, da UFSC. Neste artigo, os signatários pediam a construção democrática do código ambiental.

A subscrição do artigo foi reforçada por um abaixo-assinado virtual, que em apenas quatro dias colheu mais de 2500 assinaturas, e que foi entregue aos parlamentares com um ofício assinado pela presidente do Comitê do Itajaí, Maria Izabel Sandri. Os três documentos constituíram-se num manifesto que proporcionou novas discussões e levou à consolidação do MOVICAL.

Os opositores ao texto do PL. 0238/08 sustentam, desde o início, que se o código catarinense for aprovado do jeito que está vai erradicar anos de construção de políticas públicas ambientais. Para eles, o projeto atende a interesses de grupos econômicos e políticos e permitirá ainda mais a ocupação de áreas vulneráveis (encostas, margens, nascentes, restingas, mangues, contribuindo para aumentar riscos de desastres, além de confundir os órgãos ambientais.

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