Código (Anti) Ambiental de Santa Catarina

Transcorridos pouco mais de três meses das catástrofes que assolaram o estado de Santa Catarina, em razão das fortes enxurradas e dos descuidos do homem com o meio ambiente, provocando enchentes de toda ordem, deslizamentos de encostas, dezenas de mortos e milhares de desabrigados, além de gigantescos prejuízos econômicos ao Estado, parece que a tragédia sensibilizou o Brasil e o Mundo, mas não a maioria dos deputados catarinenses, determinados que estão para a aprovação do Código Ambiental Estadual, PL 0238.0/2008, prevista para o próximo dia 31 de março na ALESC.

Das inúmeras alterações realizadas pelo Governo do Estado à minuta inicialmente elaborada por representantes de diferentes segmentos da sociedade civil, entidades públicas e privadas, a mais grave e perigosa de todas as alterações, sem sombra de dúvidas, está na redução das matas ciliares situadas às margens dos cursos d’água, de 30 para 5 metros. A mobilização do setor produtivo, com o apoio explícito do Governo é enorme e bem articulada, confundindo significativamente a opinião pública.

O argumento utilizado é o prejuízo econômico que as áreas de preservação permanente- APPs, situadas ao longo dos rios, ocasiona com a perda de área produtiva na pequena propriedade rural. Segundo informações do Levantamento Agropecuário Catarinense – LAC, 89% das propriedades agrícolas catarinenses são minifúndios de até 50 hectares, representando aproximadamente 167.000 propriedades rurais distribuídas em solo catarinense.

E o argumento é que uma parcela destes está sendo economicamente afetada pelas regras ambientais vigentes. Porém, o que poucos sabem é que, também segundo dados do LAC, dos aproximadamente 6.000.000 de hectares que servem à produção agrícola do Estado, 32,52%  pertence a apenas 1,9% dos proprietários rurais, detentores de grandes latifúndios. Este dado deixa explícito que os principais interessados (e beneficiados) com a mudança legislativa não são os pequenos agricultores (que representam 45,68% da extensão fundiária), e sim os grandes.

Com a lei, toda a sociedade catarinense abdicará para sempre de boa parte deste importantíssimo bem ambiental que a todos pertence (as matas ciliares), cuja função prioritária está na preservação dos recursos hídricos, essencial à sobrevivência humana, renúncia esta que servirá, de forma especial, a uma minoria economicamente privilegiada. É justo que isso ocorra? O que poucos sabem, pasmem, é que o pequeno agricultor familiar, e somente ele, em vista do reconhecido interesse social da sua atividade, já possui autorização legal, pelo próprio Código Florestal (lei 4.771/65) que se pretende revogar, para economicamente utilizar as áreas de preservação permanente, desde que o faça mediante um sistema de manejo agroflorestal sustentável.

Na realidade, nem o Poder Executivo Estadual, nem o Setor Agroindustrial, em vista da redação do art. 115 do projeto de lei, demonstram empenho em contornar o problema pelo caminho da legalidade, estímulo à utilização responsável destas áreas ecologicamente importantes e geração de fontes alternativas de renda ao pequeno agricultor. Aliás, no sistema de integração é fato sabido que desinteressa às agroindústrias que os seus integrados tenham outras fontes de renda. A absoluta relação de dependência faz e sempre fez parte do negócio. Também é importante que a população saiba que o Ministério Público, com razoabilidade e responsabilidade sócio-ambiental, de forma pontual, há anos, juntamente com a FATMA e outras entidades, mostra-se sensível à causa.

O auxílio vem sendo prestado a milhares de pequenos agricultores com a facilitação da obtenção dos licenciamentos ambientais através de termos de ajustamento de condutas- TACs,  que vem sendo firmados e renovados com os diferentes setores produtivos (suinocultura, avicultura, rizicultura, fruticultura, dentre outros), voltados à regularização ambiental de situações consolidadas. Esses ajustes, em sua maioria, fixam a extensão das matas ciliares a serem protegidas em 10 metros, e não 30 como afirma o setor produtivo, mediante o cumprimento de outras exigências ambientais importantes, com especial destaque para o tratamento e destinação  adequada dos resíduos da produção.

É revoltante que projetos de lei voltados a instituição de incentivos fiscais ecológicos, assim como outras iniciativas de estímulo à preservação ambiental e à sustentabilidade da própria atividade econômica continuem sem vez na Assembléia Legislativa. Se o Código Ambiental Estadual for aprovado com a atual redação, constituir-se-á numa aberração jurídica, eis que afrontará o Estado Constitucional de Direito em desrespeito às regras de competência previstas nas Constituições Federal e Estadual, como bem sabem os senhores Deputados, além de apresentar vício de legitimidade, eis que a sua redação atual não possui o amplo respaldo social, mas principalmente de um segmento, que é o setor produtivo.

E afetará também, de forma direta, a geração presente, tornando-a ainda mais vulnerável às intempéries climáticas, estimulando a ocorrência de novas catástrofes, possivelmente com maior envergadura que as já ocorridas, considerando a importância das matas ciliares na contenção de enchentes em face das previsíveis enxurradas que estão por vir.

Acredito que ainda haja tempo para uma mobilização e forte reação social voltada à reversão do quadro grave que se anuncia e sensibilização de nossos representantes, dispensando complexas batalhas judiciais, desgastantes e custosas aos cofres públicos.   Ou aguardemos, mais uma vez, as conseqüências catastróficas de nossa passividade.   

Luis Eduardo Souto é Promotor de Justiça e Coordenador-Geral do Centro de Apoio Operacional do Ministério Público de Santa Catarina. O artigo acima foi apresentado no Seminário "Ambientalis 2009", realizado em Chapecó de 17 a 19.03.2009, na palestra "Código ambiental de Santa Catarina".

Exemplo de que APP bem conservada ajuda a conter os impactos de enchentes e enxurradas. Ribeirão Garcia em Blumenau, com matas cilicares intactas após a catástrofe de novembro de 2008. Foto: Miriam Prochnow.

Apremavi apoia Movimento por um Código Ambiental Legal

O Movimento por um Código Ambiental Legal (MOVICAL) é uma integração de várias organizações que buscam uma discussão democrática do Projeto de Lei 0238/2008, que tramita na Assembléia Legislativa de Santa Catarina e que pretende instituir o Código Estadual do Meio Ambiente.

O MOVICAL começou nas audiências públicas, promovidas em todo o Estado em novembro de 2008, quando, sob vaias, diferentes grupos e entidades se manifestaram sobre diferentes conteúdos do PL. Houve um grande clamor por parte de técnicos, pesquisadores e ambientalistas, que se esta lei fosse aprovada, apesar do nome Código Ambiental, aumentaria ainda mais o quadro de degradação e vulnerabilidade socioambiental.

A iniciativa conta com um site específico onde podem ser acessados inúmeros artigos importantes sobre a questão, como o  SOS Legislação Ambiental, já publicado no próprio site da Apremavi.

O movimento busca ainda o apoio da população e de organizações da sociedade civil através de um abaixo-assinado, solicitando que o código atenda os parâmetros legais estipulados pela Constituição Federal de 1988: manutenção de um ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

O MOVICAL alerta para a importância da iniciativa, levando em conta principalmente, que poucos dias depois da última audiência, Santa Catarina foi vítima de uma grande catástrofe sócio-ambiental. Ainda assim, o plano da Assembléia Legislativa, que fez o questionado Projeto de Lei tramitar em regime de urgência, era votar o Código Ambiental em 18 de dezembro. Os setores e grupos interessados na alteração de determinados pontos do projeto passaram a se articular no sentido de prorrogar o prazo de votação do PL.

A discussão ganhou novo fôlego no início de dezembro, quando as comissões parlamentares decidiram ampliar o prazo para a apresentação de emendas até 27 de fevereiro de 2009, e marcar a votação para 31 de março. Parte desta vitória pode-se creditar à publicação de um artigo no Diário Catarinense no dia 29 de novembro, subscrito por professores da UFSC, UNIVALI, FURB e UNESC e representantes de organizações como a Associação Brasileira de Recursos Hídricos, CREA/CONSEMA e do Núcleo de Estudos em Serviço Social e Organização Popular – NESSOP, da UFSC. Neste artigo, os signatários pediam a construção democrática do código ambiental.

A subscrição do artigo foi reforçada por um abaixo-assinado virtual, que em apenas quatro dias colheu mais de 2500 assinaturas, e que foi entregue aos parlamentares com um ofício assinado pela presidente do Comitê do Itajaí, Maria Izabel Sandri. Os três documentos constituíram-se num manifesto que proporcionou novas discussões e levou à consolidação do MOVICAL.

Os opositores ao texto do PL. 0238/08 sustentam, desde o início, que se o código catarinense for aprovado do jeito que está vai erradicar anos de construção de políticas públicas ambientais. Para eles, o projeto atende a interesses de grupos econômicos e políticos e permitirá ainda mais a ocupação de áreas vulneráveis (encostas, margens, nascentes, restingas, mangues, contribuindo para aumentar riscos de desastres, além de confundir os órgãos ambientais.

SOS Legislação Ambiental

A iniciativa dos professores e pesquisadores de Santa Catarina de lançar o manifesto "Criação do código ambiental catarinense: uma reflexão sobre as enchentes e os deslizamentos", merece elogios e todo apoio. O documento mostra que existem pessoas abnegadas e serenas, além de preocupadas com o bem estar geral, que conseguem trazer luz para a discussão desta catástrofe e procuram evitar algo pior no futuro.

O documento, além de oportuno, é muito importante, especialmente neste momento em que forças políticas retrógradas e com interesses imediatistas, investem contra a legislação ambiental na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, no Congresso Nacional e no CONAMA. O termo “retrógrado” ficará explicado ao longo deste texto.

É necessário mencionar que Santa Catarina e o Vale do Itajaí, em particular, sempre conviveram com enchentes, um fenômeno natural, que ocorre mesmo em regiões não desmatadas. No entanto, em regiões não desmatadas e naquelas em que as APPs (em geral áreas de risco natural) não estão ocupadas por moradias ou outros itens de infra-estrutura, as conseqüências econômicas e sociais são bem menores, em especial aquelas que implicam em perda de vidas humanas.

Tristemente, nos últimos 8 anos, de acordo com dados da Fundação SOS Mata Atlântica e do INPE, o Estado de Santa Catarina é apontado como o campeão nacional de desmatamento da Mata Atlântica. Um título que certamente envergonha a maioria dos catarinenses e que é resultado das iniciativas contra o meio ambiente que vem sendo corroboradas por diversos representantes políticos e governamentais do Estado.

Infelizmente o Governo e alguns parlamentares de Santa Catarina tem atuado em todas as frentes possíveis (Assembléia Legislativa de SC, Congresso Nacional, CONAMA) para acabar ou flexibilizar a legislação que protege as áreas de preservação permanente e a reserva legal, visando ampliar as possibilidades de ocupação de áreas de risco, sob discursos sem nenhuma consistência técnica ou científica. Alegam que sem a ocupação dessas áreas o Estado de SC fica inviabilizado e os pequenos produtores irão à falência.

Se não bastasse isso, o Governador de SC também tem atuado fortemente contra a criação de Unidades de Conservação. Em 2005 entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3646, com requerimento de medida liminar para a suspensão da eficácia do art. 22 e seus parágrafos 5º e 6º da Lei nº 9.985, de 18.07.2000. Com isso, na prática o Governador quer impedir a criação de novas áreas protegidas.

Essa iniciativa contra as Unidades de Conservação não se restringe apenas ao discurso e às Ações na Justiça. Um exemplo desse absurdo é encaminhamento recente do Projeto de Lei à Assembléia Legislativa que visa reduzir significativamente o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, para atender interesses de especuladores, fato esse inclusive denunciado por representantes da Assembléia Legislativa e por funcionários da Fundação do Meio Ambiente (FATMA). Só para lembrar, a maior parte da água consumida pela população da grande Florianópolis vem de dentro do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro.

Tem mais, o Governo de SC também impetrou ações na justiça contra o Parque Nacional da Serra do Itajaí, o Parque Nacional das Araucárias e a Estação Ecológica da Mata Preta além de apoiar ações na justiça e usar o poder político contra a criação do Parque Nacional do Campo dos Padres e do Refúgio de Vida Silvestre do Rio Pelotas.

No entanto, é importante destacar também que já houve época em que Santa Catarina era destaque nacional em ações em prol da conservação da natureza. Apenas para rememorar um exemplo: em 1989 foi aprovada por unanimidade na Câmara dos Deputados e depois referendada no Senado Federal a Lei nº 7.803, de autoria do Deputado Artenir Werner, natural de Rio do Sul no Alto Vale do Itajaí, uma das cidades atingidas pelas grandes enchentes de 1983 e 1984.

O Deputado Artenir Werner, que era madeireiro, propôs o manejo sustentado das florestas e a alteração das faixas de APP. Uma das justificativas do Deputado para dar maior rigor à legislação sobre as APPs: “Seja ampliada, ao longo dos rios, a inexpressiva faixa marginal de vegetação, cuja preservação a lei exige. Tão estreita (era de apenas 5 metros em cada lado da margem para os rios com até 10 metros de largura), ela expõe os cursos d´água e os seres vivos aí existentes às ações adversas, que naturais ou antropogênicas, e a efeitos danosos para os ecossistemas”. (Fonte: anais da Câmara dos Deputados).

Outro argumento utilizado à época para ampliar as faixas de APP e estender claramente o regime jurídico das APPs também para as áreas urbanas foi o de que os prejuízos econômicos e em vidas humanas decorrentes das grandes enchentes em SC, de 1983 e 1984, teriam sido menores se estas faixas de APP fossem maiores. Neste sentido o Congresso Nacional, aprovou o Projeto do Deputado Artenir Werner, que alterou o art. 2º da Lei 4771, de 1965, acrescentando o texto abaixo:

“Art. 1º A Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, passa a vigorar com as seguintes alterações:

I – o art. 2º passa a ter a seguinte redação:

"Art. 2º …………………………………………………………………..

a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima seja.

1) de 30 (trinta) metros para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;

2) de 50 (cinqüenta) metros para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinqüenta) metros de largura;

3) de 100 (cem) metros para os cursos d’água que tenham de 50 (cinqüenta) a 200 (duzentos) metros de largura;

4) de 200 (duzentos) metros para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;

5) de 500 (quinhentos) metros para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros;

c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados olhos d’água, qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinqüenta) metros de largura;

……………………………………………….

g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais;

h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação.

Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo." (Grifo nosso).

Aproveitamos para relembrar que em 1984 morávamos numa casa de madeira, alugada, na cidade de Ibirama (SC), num desses loteamentos feitos numa encosta de morro com declividade de aproximadamente 20º. As ruas do loteamento foram construídas de baixo para cima do morro, retas, e as casas, uma ao lado da outra, construídas em pequenos patamares, com barrancos (ou muros) de uns 2 a 3 metros de altura ao lado de cada casa. A nossa casa, assim como outras casas na cidade, foi atingida por desbarrancamento. No nosso caso, foram apenas prejuízos materiais, visto que não havia ninguém dentro de casa na hora do desbarrancamento. A experiência vivida naquelas enchentes trouxe a certeza de que era necessário ampliar as faixas de APP e defender a sua conservação.

Cabe também mencionar que não apenas alguns políticos de SC, mas também políticos de outros estados, além de outras autoridades públicas e representantes de setores empresariais, não raro, defendem mudanças no Código Florestal, especialmente a diminuição das faixas e percentuais de APPs e Reservas Legais, e a possibilidade de construção em áreas de risco. A título de exemplo basta verificar as inúmeras iniciativas que ocorreram nos últimos anos envolvendo as discussões do Projeto de Lei 3057, que tramita na Câmara dos Deputados e trata do parcelamento do solo urbano.

Diante da gravidade da catástrofe de Santa Catarina, da perda de mais de uma centena de vidas humanas, de centenas de milhões de reais em prejuízos econômicos é o momento de denunciar esta proposta de “Código Ambiental de Santa Catarina” e trabalhar pela sua não aprovação, pois na verdade trata-se de um código contra a conservação do meio ambiente. Além disso, é necessário denunciar e trabalhar contra a aprovação de todas as outras iniciativas contra o meio ambiente, especialmente aquelas que querem acabar com as APPs, a Reserva Legal e as Unidades de Conservação, visto que ao fim e ao cabo, tais iniciativas acabam se voltando contra o bem estar e a segurança da sociedade.

Miriam Prochnow – Especialista em Ecologia
Wigold B. Schaffer
– Administrador

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Uma reflexão sobre a Tragédia em Santa Catarina

Criação do código ambiental catarinense:

uma reflexão sobre as enchentes e os deslizamentos

Blumenau, 28 de novembro de 2008

As imagens de morros caindo, de desespero e morte, de casas, animais e automóveis sendo tragados por lama e água, vivenciadas por centenas de milhares de pessoas no Vale do Itajaí e Litoral Norte Catarinense nos últimos dias, são distintas, e muito mais graves, das experiências de enchentes que temos na memória, de 1983 e 1984.

Por que tudo aconteceu de forma tão diferente e tão trágica? Será que a culpa foi só da chuva, como citam as manchetes? Nossa intenção não é apontar culpados, mas mencionar alguns fatos para reflexão, para tentar encaminhar soluções mais sábias e duradouras, e evitar mais e maiores problemas futuros.

Houve muita chuva sim. No médio vale do Itajaí ocorreu mais que o dobro da quantidade de chuva que causou a enchente de agosto de 1984. Aquela enchente foi causada por 200 mm de chuva em todo o Vale do Itajaí. Agora, em dois dias foram registrados 500 mm de precipitação, ou seja, 500 litros por metro quadrado, mas somente no Médio Vale e no Litoral.

A quantidade de chuva de fato impressiona. Segundo especialistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a floresta amazônica é a principal fonte de precipitações de grande parte do continente e tudo o que acontecer com ela modificará de maneira decisiva o clima no Sul e no norte da América do Sul. Assim, as inundações de Santa Catarina e a seca na Argentina seriam atribuídas à fumaça dos incêndios florestais, que altera drasticamente o mecanismo de aproveitamento do vapor d’água da floresta amazônica. Outros especialistas discordam dessa hipótese e afirmam que houve um sistema atmosférico perfeitamente possível no Litoral Catarinense.

Existe uma periodicidade de anos mais secos e anos mais úmidos, com intervalo de 7 a 10 anos, e entramos no período mais úmido no ano passado. Esse mecanismo faz parte da dinâmica natural do clima. De qualquer forma, outros eventos climáticos como esse são esperados e vão acontecer.

Mas o Vale do Itajaí sabe lidar com enchentes melhor do que qualquer outra região do país. Claro que muito pode ser melhorado no gerenciamento das cheias, à medida que as prefeituras criarem estruturas de defesa civil cada vez mais capacitadas e à medida que os sistemas de monitoramento e informação forem
sendo aperfeiçoados.

De todos os desastres naturais, as enchentes são os mais previsíveis, e por isso mais fáceis de lidar. Os deslizamentos e as enxurradas não. Esses são praticamente imprevisíveis, e é aí que reside o real problema dessa catástrofe.

É preciso compreender que chuvas intensas são parte do clima subtropical em que vivemos. E é por causa desse clima que surgiu a mata atlântica. Ela não é apenas decoração das paisagens catarinenses, tanto como as matas ciliares não existem apenas para enfeitar as margens de rios. A cobertura florestal natural das encostas, dos topos de morros, das margens de rios e córregos existe para proteger o solo da erosão provocada por chuvas, permite a alimentação dos lençóis d´água e a manutenção de nascentes e rios, e evita que a água da chuva provoque inundações rápidas (enxurradas).

A construção de habitações e estradas sem respeitar a distância de segurança dos cursos d’água acaba se voltando contra essas construções como um bumerangue, levando consigo outras infra-estruturas, como foi o caso do gasoduto. Esse é um dos componentes da tragédia.

Já os deslizamentos, ou movimentos de massa, são fenômenos da dinâmica natural da Terra. Mas não é o desmatamento que os causa. A chuva em excesso acaba com as propriedades que dão resistência aos solos e mantos de alteração para permanecerem nas encostas. O grande problema de ocupar encostas é fazer cortes e morar embaixo ou acima deles. Há certas encostas que não podem ser ocupadas por moradias, principalmente as do vale do Itajaí, onde o manto de intemperismo, pouco resistente, se apresenta muito profundo e com vários planos de possíveis rupturas (deslizamento), além da grande inclinação das encostas. E é aí que começa a explicação de outra parte da tragédia que estamos vivendo.

A ocupação dos solos nas cidades não tem sido feita levando em conta que estão assentadas sobre uma rocha antiga, degradada pelas intempéries, e cuja capacidade de suporte é baixa. Através dos cortes aumenta a instabilidade. As fortes chuvas acabaram com a resistência e assim o material deslizou.

A ocupação do solo é ordenada por leis municipais, os planos diretores urbanos. Esses planos diretores definem como as cidades crescem, que áreas vão ocupar e como se dá essa ocupação. Por falta de conhecimento ecológico dos poderes executivo, judiciário e legislativo (ou por não leva-lo em consideração), o código florestal tem sido desrespeitado pelos planos diretores em praticamente todo o Vale do Itajai, e também no litoral catarinense, sob a alegação de que o município é soberano para decidir, ou supondo que a mata é um enfeite desnecessário. Da mesma forma, as encostas têm sido ocupadas, cortadas e recortadas, à revelia das leis da Natureza.

Trata-se de uma falta de compreensão que está alicerçada na idéia, ousada e insensata, de que os terrenos devem ser remodelados para atender aos nossos projetos, em vez de adequarmos nossos projetos aos terrenos reais e sua dinâmica natural nos quais irão se assentar.

A postura não é diferente nas áreas rurais, onde a fiscalização ambiental não tem sido eficiente no controle de desmatamentos e intensidade de cultivos em locais impróprios, como mostram as denúncias frequentes veiculadas nas redes que conectam ambientalistas e gestores ambientais de toda região. A irresponsabilidade se estende, portanto, para toda a sociedade.

Deslizamentos, erosão pela chuva e ação dos rios apresentam fatores condicionantes diferentes, mas todos fazem parte da dinâmica natural. A morfologia natural do terrreno é uma conquista da natureza, que vai lapidando e moldando a paisagem na busca de um equilíbio dinâmico. Erode aqui, deposita ali e assim vai
conquistando, ao longo de milhões de anos, uma estabilidade dinâmica. O que se deve fazer é conhecer sua forma de ação e procurar os cenários da paisagem onde sua atuação seja menos intensa ou não ocorra.

As alterações desse modelado pelo homem foram as principais causas dos movimentos de massa que  ocorreram em toda a região. Portanto, precisamos evoluir muito na forma de gestão urbana e rural e encontrar mecanismos e instrumentos que permitam a convivência entre cidade, agricultura, rios e
encostas.

Por isso tudo, essa catástrofe é um apelo à inteligência e à sabedoria dos novos ou reeleitos gestores municipais e ao governo estadual, que têm o desafio de conduzir seus municípios e toda Santa Catarina a uma crescente robustez aos fenômenos climáticos adversos. Não adianta reconstruir o que foi destruído, sem considerar o equívoco do paradigma que está por trás desse modelo de ocupação. É necessário pensar soluções sustentáveis. O desafio é reduzir a vulnerabilidade.

Uma estranha coincidência é que a tragédia catarinense ocorreu na semana em que a Assembléia Legislativa concluiu as audiências públicas sobre o Código Ambiental, uma lei que é o resultado da pressão de fazendeiros, fábricas de celulose, empreiteiros e outros interesses, apoiados na justa preocupação de pequenos agricultores que dispõe de pequenas extensões de terra para plantio.

Entre outras propostas altamente criticadas por renomados conhecedores do direito constitucional e ambiental, a drástica redução das áreas de preservação permanente ao longo de rios, a desconsideração de áreas declivosas, topos de morro e nascentes, além da eliminação dos campos de altitude (reconhecidas paisagens de recarga de aqüíferos) das áreas protegidas, são dispositivos que aumentam a chance de ocorrência e agravam os efeitos de catástrofes como a que estamos vivendo. Alega o deputado Moacir Sopelsa que a lei ambiental precisa se ajustar à estrutura fundiária catarinense, como se essa estrutura fundiária não fosse, ela mesma, um produto de opções anteriores, que negligenciaram a sua base de sustentação.

Sugerimos que os deputados visitem Luiz Alves, Pomerode, Blumenau, Brusque, só para citar alguns municípios, para aprender que a estrutura fundiária e a urbana é que precisam se ajustar à Natureza. Dela as leis são irrevogáveis e a tentativa de revogá-las ou ignorá-las custam muitas vidas e dinheiro público e privado.

É hora de ter pressa em atender os milhares de flagelados. Não é hora de ter pressa em aprovar uma lei que torna o território catarinense ainda mais vulnerável para catástrofes naturais.

Prof. Dra. Beate Frank (FURB, Projeto Piava)
Prof. Dr. Antonio Fernando S. Guerra (UNIVALI)
Prof. Dra. Edna Lindaura Luiz (UNESC)
Prof. Dr. Gilberto Valente Canali (Ex-presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos)
Prof. Dr. Hector Leis (UFSC)
João Guilherme Wegner da Cunha (CREA/CONSEMA)
Prof. Dr. Juarês Aumond (FURB)
Prof. Dr. Julio Cezar Refosco (FURB)
Prof. Dr. Lino Fernando Bragança Peres (UFSC)
Prof. Dra. Lúcia Sevegnani (FURB)
Prof. Dr. Luciano Florit (FURB)
Prof. Dr. Luiz Fernando P. Sales (UNIVALI)
Prof. Dr. Luiz Fernando Scheibe (UFSC)
Prof. Dr. Marcus Polette (UNIVALI)
Prof. Dra. Noemia Bohn (FURB)
Núcleo de Estudos em Serviço Social e Organização Popular – NESSOP (UFSC)
Prof. Dra. Sandra Momm Schult (FURB)
Equipe do Projeto Piava (Fundação Agência de Água do Vale do Itajaí).

Se você também quer uma discussão mais aprofundada sobre o Código Ambiental e deseja que os parlamentares saibam disso, acesse o site www.comiteitajai.org.br/abaixoassinado

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O Decreto da Mata Atlântica

A aprovação, após 14 anos de tramitação no Congresso Nacional, da Lei 11.428 de 22.12.2006, conhecida como Lei da Mata Atlântica, foi um passo importantíssimo para a conservação dos remanescentes dessa floresta, que é considerada Patrimônio Nacional e que abrange total ou parcialmente 17 estados brasileiros.

A Apremavi, como integrante da Rede de ONGs da Mata Atlântica, participou ativamente das atividades em prol da Lei da Mata Atlântica e também pela assinatura e publicação do Decreto de regulamentação da Lei.

Por isso, a Apremavi considera que a assinatura do Decreto 6660 no dia 21.11.2008, que regulamenta a Lei 11.428, é outro passo decisivo para a consolidação da legislação que protege a Mata Atlântica e cria uma segurança jurídica, na medida em que estabelece em detalhes “o que”, “como” e “onde” pode haver intervenção ou uso sustentável da floresta e ecossistemas associados. Ele atende reivindicações históricas, principalmente dos pequenos produtores rurais e populações tradicionais.

O Decreto também detalha os tipos de vegetação protegidos pela Lei da Mata Atlântica os quais são delimitados no “Mapa da Área de Aplicação da Lei 11.428, de 2006”, elaborado pelo IBGE. De acordo com o Decreto, o Mapa será disponibilizado nos sítios eletrônicos do IBGE e do MMA e também na forma impressa.

O Mapa elaborado pelo IBGE contempla as configurações originais das seguintes Formações Florestais e Ecossistemas Associados, bem como os encraves florestais e brejos interioranos: Floresta Ombrófila Densa; Floresta Ombrófila Mista, também denominada de Mata de Araucárias; Floresta Ombrófila Aberta; Floresta Estacional Semidecidual; Floresta Estacional Decidual; campos de altitude; áreas das formações pioneiras, conhecidas como manguezais, restingas, campos salinos e áreas aluviais; refúgios vegetacionais; áreas de tensão ecológica; brejos interioranos e encraves florestais, representados por disjunções de Floresta Ombrófila Densa, Floresta Ombrófila Aberta, Floresta Estacional Semidecidual e Floresta Estacional Decidual; áreas de estepe, savana e savana-estépica; e vegetação nativa das ilhas costeiras e oceânicas. O IBGE elaborou o Mapa com base na Lei 11.428, de 2006 e Resoluções do CONAMA que tratam da matéria.

A Lei e o Decreto procuram proteger efetivamente o que restou da Mata Atlântica ao estabelecer que quaisquer novos empreendimentos na região abrangida, sejam preferencialmente implementados em áreas já substancialmente alteradas ou degradadas.

Um destaque importante é que o regime jurídico da Lei e deste Decreto somente se aplica aos remanescentes de vegetação nativa, não interferindo em áreas já ocupadas legalmente com agricultura, cidades, pastagens e florestas plantadas ou outras áreas desprovidas de vegetação nativa.

O Decreto permitirá que a grande parcela da população brasileira que vive na Mata Atlântica, concilie o desenvolvimento socioeconômico com a necessária conservação do que restou deste conjunto de formações florestais e ecossistemas associados, que ainda guarda um dos maiores índices de diversidade de plantas e animais do planeta. O Decreto também vai contribuir para o alcance do “desmatamento ilegal zero” na Mata Atlântica.

O Decreto também estabelece procedimentos simplificados para o uso sustentável da Mata Atlântica para pequenos produtores rurais e população tradicional e os requisitos mínimos necessários para a coleta de subprodutos como folhas, frutos e sementes, manutenção da prática do pousio e até mesmo da exploração de espécies arbóreas pioneiras, tudo em perfeita harmonia com a determinação constitucional de se promover a proteção e o uso sustentável dos recursos naturais.

Além disso ele estimula o plantio de espécies nativas para recuperação de áreas já desmatadas e também para a produção de matéria prima florestal para uso econômico.

Importante lembrar que a qualidade de vida de mais de 110 milhões de brasileiros depende dos serviços ambientais prestados pelos remanescentes de Mata Atlântica, quer na proteção e manutenção de nascentes e fontes de água que abastecem as cidades e comunidades, na regulação do clima, da temperatura, da umidade e das chuvas, como também ao assegurar a fertilidade do solo, garantindo a produtividade das nossas lavouras, e protegendo escarpas e encostas de morros dos processos erosivos.

O Decreto avança também no estabelecimento dos requisitos mínimos para a elaboração do PLANO MUNICIPAL DE CONSERVAÇÃO E RECUPERAÇÃO DA MATA ATLÂNTICA, estabelecido pela Lei com o objetivo de envolver os municípios na conservação e recuperação da Mata Atlântica. O plano municipal poderá ser elaborado em parceria com instituições de pesquisa ou organizações da sociedade civil, devendo ser aprovado pelo Conselho Municipal de Meio Ambiente.

Só ficou faltando no Decreto a regulamentação do Fundo de Restauração do Bioma Mata Atlântica que é fundamental para que as ações necessárias à conservação e recuperação do Bioma possam efetivamente serem implementadas. Esperamos que essa regulamentação saia na maior brevidade possível.

Agradecemos imensamente a todos que se dedicaram para que mais este avanço na legislação de proteção da Mata Atlântica fosse possível.

Alguns pontos importantes do decreto

O que pode ser feito nos remanescentes de Mata Atlântica?

1 – É livre a exploração eventual, sem propósito comercial direto ou indireto, de espécies da flora nativa provenientes de formações naturais, para consumo nas propriedades rurais, posses das populações tradicionais ou de pequenos produtores rurais, respeitadas a vegetação primária, as espécies ameaçadas e os seguintes limites:

Limites máximos para exploração eventual sem propósito comercial:
– 15 m3 de lenha por ano por propriedade ou posse.
– 20 m3 de madeira a cada 3 anos por propriedade ou posse.

2 – Estimula o Enriquecimento Ecológico da Vegetação secundária, com espécies nativas com vistas a recuperar a biodiversidade dos remanescentes de vegetação secundária.

3 – Estabelece que o Plantio e Reflorestamento com espécies nativas pode ser feito sem autorização dos órgãos ambientais.

4 – Permite o corte e exploração de espécies nativas comprovadamente plantadas, com autorização do órgão ambiental e desde que as mesmas estejam previamente cadastradas junto ao mesmo.

5 – Simplifica o procedimento para autorização do corte ou supressão de vegetação em estágio inicial de regeneração e para o Pousio em áreas de até 2 hectares por ano para pequenos produtores e população tradicional.

6 – Estabelece os critérios para a livre coleta de folhas, frutos e sementes, tais como: períodos de coleta e época de maturação dos frutos e sementes.

7 – Permite a prática do extrativismo sustentável, por intermédio da condução de espécie nativa produtora de folhas, frutos ou sementes, visando a produção e comercialização, e a adoção das regras do Sistema Participativo de Garantia da Qualidade Orgânica nos termos do Decreto no 6.323, de 27 de dezembro de 2007.

8 – Reconhece um conjunto de atividade de uso indireto, que não necessitam de autorização dos órgãos ambientais:
    I – abertura de pequenas vias e corredores de acesso;
    II – implantação de trilhas para desenvolvimento de ecoturismo;
    III – implantação de aceiros para prevenção e combate a incêndios florestais;
    IV – construção e manutenção de cercas ou picadas de divisa de propriedades; e
    V – pastoreio extensivo tradicional em remanescentes de campos de altitude, nos estágios secundários de regeneração, desde que não promova a supressão da vegetação nativa ou a introdução de espécies vegetais exóticas.

9 – Estabelece os critérios para o corte ou exploração de Espécies Florestais Pioneiras em florestas em estágio médio de regeneração de acordo com lista de espécies pioneiras publicada pelo Ministério do Meio Ambiente.

10 – Define como será a compensação por destinação de área equivalente nos casos de supressão de vegetação em função de obras ou empreendimentos legalmente autorizados, dando ao empreendedor a possibilidade de optar entre as seguintes alternativas:

I – destinar área equivalente à extensão da área desmatada, para conservação, com as mesmas características ecológicas, na mesma bacia hidrográfica;
II – destinar, mediante doação ao Poder Público, área equivalente no interior de unidade de conservação de domínio público, pendente de regularização fundiária, localizada na mesma bacia hidrográfica, no mesmo Estado;
III – efetuar a reposição florestal, com espécies nativas, em área equivalente à desmatada, na mesma bacia hidrográfica.

11 – Reconhece a importância da preservação das Espécies Ameaçadas de Extinção, as quais devem receber atenção especial da sociedade e dos órgãos ambientais.

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