A Tragédia de Barra Grande

Daniel Medeiros, sócio da Apremavi, defende hoje seu trabalho de conclusão do curso de jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Ele escreveu um livro-reportagem sobre a hidrelétrica de Barra Grande. Uma história que continua marcando a vida das pessoas e que não pode ser esquecida.

A Apremavi parabeniza o trabalho realizado e tem certeza de que em breve o Livro “A Tragédia de Barra Grande” estará nas livrarias deste país.

Confira a sinopse.

A TRAGÉDIA DE BARRA GRANDE

A história e as histórias da hidrelétrica que afogou a floresta.

O que torna a hidrelétrica de Barra Grande única dentre outras construídas na bacia do rio Uruguai é o impacto ambiental. Conflito entre empreendedor e comunidade atingida existiu em todas as barragens da região e geração de emprego também foi uma conseqüência de todas elas. Mas a destruição de cerca de seis mil hectares de floresta com araucária é exclusividade de Barra Grande. As matas primárias não foram descritas no Estudo de Impacto Ambiental, o órgão federal responsável pelo licenciamento ambiental autorizou a construção da usina e quando o problema veio à tona um muro de concreto com cento e oitenta e cinco metros de altura, que custou R$ 1,36 bilhão, já havia sido construído no leito do rio Pelotas, entre o município catarinense de Anita Garibaldi e o município gaúcho de Pinhal da Serra.

Foi nesse momento que ONGs ambientalistas entraram com ação na justiça para impedir a derrubada da floresta. Simultaneamente, cerca de mil e cem homens partiram de diferentes estados do país para cortar as árvores que estavam no caminho do reservatório de Barra Grande. Acirrando ainda mais o conflito, pessoas que estavam prestes a ter suas terras inundadas acamparam na beira de estradas próximas ao canteiro de obras para impedir o corte das árvores e, conseqüentemente, o fechamento das comportas da barragem. É neste cenário que se desenrola A tragédia de Barra Grande.

A reportagem mostra, do ponto de vista de três personagens, os impactos ambientais, econômicos e sociais da usina hidrelétrica de Barra Grande, construída na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. A narrativa começa em setembro de 2004 quando Lorival Tadeu da Silva, um cortador de árvores, parte do interior do Paraná para trabalhar na obra da usina. Para ele, a hidrelétrica trouxe emprego e a esperança de vida melhor. Para Miriam Prochnow, ambientalista, a mesma usina é uma tragédia, pois vai destruir uma floresta ameaçada de extinção. Para Soli Melo da Silva, a terceira personagem, Barra Grande é uma ameaça: suas terras serão inundadas pelo reservatório formado pela barragem do rio Pelotas. A partir daí, é narrada a trajetória destas três pessoas até maio de 2006.

Entre histórias pessoais são colocados os detalhes que fizeram de Barra Grande uma obra polêmica. As falhas no processo de licenciamento ambiental, as decisões judiciais que embargaram a obra, o assassinato de um trabalhador e o impacto nas comunidades atingidas pelo empreendimento são alguns dos aspectos abordados. Os detalhes são contextualizados com informações históricas a respeito do setor elétrico brasileiro, da devastação da floresta com araucária e da indústria de alumínio, grande interessada na energia gerada pela usina. Dados macroeconômicos, políticos e culturais ajudam a entender a importância da obra e as diferentes concepções a respeito de seus custos e benefícios. Como um todo, a história de Barra Grande é um exemplo de como as questões ambientais, econômicas e sociais são tratadas no Brasil de hoje em dia.

Fotos de Káthia Vasconcelos Monteiro e Miriam Prochnow

Expedição no rio Pelotas

"Quando recordo o passado Nos tempos de minha infância Lembro do rio pelotasQue ficou-me na distância.Vai Rio pelotas sem pararCorrendo vai Caminhando dia e noiteVai formar o rio Uruguai”…

Estas são rimas de uma canção popular que faz parte das tradições do povo que convive com o Pelotas, rio que fica na divisa dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e que é o principal afluente do rio Uruguai, formando uma das maiores bacias hidrográficas do Sul do Brasil. Essas águas passam ainda pela Argentina e pelo Uruguai e mais tarde se juntam ao rio Paraná para formar o grande rio da Prata.

É um rio que historicamente esteve presente na vida das pessoas. Foi lugar de passagem dos antigos tropeiros, que nele tinham que atravessar suas mulas. Aliás foi desta maneira que ele ganhou seu nome. Os tropeiros atravessavam a mula guia amarrada numa espécie de botezinho, feito com couro de boi, ao qual davam o nome de pelota.

Nessa “pelota” iam dois remadores. Daí para virar nome de rio foi um pulo. O Passo de Santa Vitória, na foz do rio dos Touros era o local de travessia dos tropeiros e foi também palco de um evento importante da revolução farroupilha, foi lá que aconteceu o combate de Santa Vitória, em 1839, com a presença de Anita Garibaldi lutando para derrubar as forças do império. Mas essa é uma outra história…

A história que queremos contar aqui é sim do Pelotas, mas vista de um outro ângulo. Do ângulo de um grupo de cientistas e ambientalistas aventureiros, que mesmo tendo que enfrentar chuvas de granizo, frio intenso e fortes ventos contrários, cavalgou as corredeiras deste rio numa inédita expedição de rafting, que foi um sucesso e desvendou um rio ainda desconhecido para grande parte da população.

Foram três dias dentro de um bote, no início de setembro, remando e percorrendo 80 km de rio, acampando nas suas margens, registrando dados da fauna, da flora, das condições da água e do ambiente em geral. Os aventureiros eram ambientalistas e técnicos da Apremavi, da Federação de Entidades Ecologistas Catarinenses, da Ativa Rafting, da Universidade Federal de Santa Catarina e do Ministério do Meio Ambiente. O Passo de Santa Vitória, é lógico, estava no roteiro. Foi local de um dos acampamentos, porque não dava para deixar de mergulhar um pouco na história.

Os cientistas aventureiros tiveram a oportunidade de ver e conviver com uma das últimas áreas de transição das florestas ombrófila mista e estacional e também de campos naturais, fato que confere ao local um alto índice de biodiversidade. Foram identificadas árvores bem conhecidas, como a araucária, o cedro e algumas canelas, mas também outras de nomes esquisitos e peculiares daquela região, como o miguel-pintado, a carne-de-vaca, o pau-toucinho e o rabo-de-mico. Nas matas ciliares surgem majestosas as araucárias que se destacam em meio aos açoita-cavalos e branquinhos que nesta época do ano perdem suas folhas e imprimem uma visão deslumbrante à paisagem. O coqueiro jerivá e o pinheiro bravo também aparecem como bordaduras no meio da mata e ainda para enfeitar as cachoeiras dos afluentes, surgem os butiás-da-serra.

É importante ressaltar que em toda a extensão do rio foram identificadas florestas em vários estágios, desde matas virgens, em estágios médio e avançado de regeneração e também algumas em estágio inicial. Um fato impressionante é a regeneração da floresta com araucárias, que em alguns trechos parece até reflorestada. Provavelmente um trabalho feito pelas gralhas e cotias que vivem na região. Mas não é só de cotias e gralhas que vive o rio. Os aventureiros tiveram contatos inesperados com lontras, capivaras, veados e várias espécies de pássaros, que deram um toque especial aos dias passados no rio. Sem falar nas inúmeras estórias sobre os pumas da região, contadas pela população.

Inesperadas também foram as surpresas encontradas nos afluentes que surgem nas curvas do Pelotas, que com suas águas límpidas muitas vezes despencam em cachoeiras belíssimas de se contemplar. Aliás, este é outro aspecto importante do rio que com seu leito rochoso, oferece aos visitantes águas volumosas e transparentes e em vários trechos, paredões de pedra e serras. É sem dúvida um grande corredor ecológico, que pode ser apreciado tanto nos seus remansos, quanto em suas corredeiras.

Falando em corredeiras e paisagens, não podemos deixar de enfatizar que o Pelotas é um rio que tem ainda muitas oportunidades a oferecer, não somente por seu passado e sua história, mas por seu presente e futuro.

Pela primeira vez na vida, este rio viu um bote de rafting, que cavalgou suas belas corredeiras e proporcionou momentos inesquecíveis aos aventureiros que ousaram enfrentar suas águas geladas de inverno. Foi aprovado, não só pelos aventureiros, mas por profissionais que fazem do turismo de aventura o seu dia-a-dia. O comandante do bote disse em alto e bom tom que ainda não tinha visto um rio dessa magnitude para uma expedição de rafting de dois dias, fora dos limites da Amazônia. Ele é majestoso, por seu volume d’água, pela beleza dos seus afluentes e de suas margens e por suas corredeiras, que mesmo sendo de classe três, não são perigosas. Com toda certeza pode vir a ser um dos destinos mais procurados por admiradores do turismo de natureza e aventura. O comandante chegou até a dizer que com um pouquinho mais de água, quem sabe uma forte chuva, ele vira um Zambezi, o famoso rio da África, um dos paraísos do rafting.

Mas ainda não acabou, os turistas que seguirem os caminhos dos aventureiros e ao final da expedição saírem do rio exultantes mas cansados, irão encontrar a acolhida amistosa da população, poderão se aquecer e saborear uma sapecada de pinhões no fogo de chão, comer um jantar típico, quem sabe dar de cara com um pouco de neve e com sorte, apreciar um belo pôr do sol. Este é talvez um dos mais belos do mundo, quando o sol, ao bailar das curicacas, tenta se esconder por detrás das magníficas copas das araucárias.

Um rio que tem essa história, que faz nascer a cultura, que guarda um ambiente natural de alta qualidade, verdadeiro e único refúgio de vida silvestre ainda preservado naquela região e, que tem um alto potencial turístico, importante para o desenvolvimento sustentável, deve ser protegido e preservado para as presentes e futuras gerações.

Fotos: Miriam Prochnow e Edegold Schaffer

Integrantes da expedição – bote e equipe de terra: 1 – Otto Hassler Comandante e guia do bote – Ativa Rafting 2 – Miriam Prochnow Coordenadora da Rede de ONGs da Mata Atlântica e integrante da Apremavi – Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto vale do Itajaí 3 – Fábio França Gerente de Projetos da Diretoria de Áreas Protegidas do MMA – Ministério do Meio Ambiente 4 – Julio César Faria Guia da Ativa Rafting 5 – João de Deus Medeiros Dr.em botânica – UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina 6 – Rubens Onofre Nodari Gerente de Recursos Genéticos da Diretoria de Biodiversidade do MMA 7 – Edegold Schaffer Presidente da Apremavi 8 – Edilaine Dick Bióloga da Apremavi 9 – Luiz Antônio Esser Mateiro da Apremavi 10 – Daniela Freitas Guia da Ativa Rafting

Apoio Geral:
11 – Emerson Antônio de Oliveira Assessor Técnico da Diretoria de Áreas Protegidas do MMA 12 – Cosme Poleze Secretário Regional em Lages da FATMA – Fundação de Meio Ambiente de SC 13 – Representantes da Polícia Ambiental de SC 14 – Representantes do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis 15 – Representantes da Fazenda Santo Cristo – Capão Alto

Rachadura na barragem de Campos Novos

Aproximadamente R$ 1 bilhão de reais foi rio abaixo, na última semana, com o esvaziamento do reservatório da usina hidrelétrica de Campos Novos, sem que tivesse gerado um megawatt de energia. Localizada entre os municípios de Celso Ramos (SC) e Pinhal da Serra (RS), esta é uma das maiores barragens do mundo com um muro de mais de 200 metros de altura. De acordo com a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, o recurso para o empreendimento é proveniente de bancos públicos: R$ 619,8 milhões é empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e R$ 300 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

"Empréstimos como este continuam sendo destinados para este tipo de empreendimento que ocasionam imensos impactos socioambientais, sem de fato contribuir para o desenvolvimento local das comunidades que vivem no entorno de grandes represas. Os riscos de acidentes são mais um elemento para questionar a viabilidade econômica destas obras", enfatiza uma das coordenadoras da Rede Brasil, Elisangela Soldatelli Paim.

A barragem começou a apresentar problemas em outubro do ano passado, mas somente agora o fato tornou-se público devido ao esvaziamento total do reservatório. No entanto, em maio, o Movimento dos Atingidos por Barragens e a Rede Brasil, preocupados com esta situação, encaminharam uma carta ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA), ao Ministério de Minas e Energia (MME), ao BID e ao BNDES – sendo estes dois últimos os financiadores da obra – solicitando informações do possível problema na barragem, sendo que, até a presente data, nenhuma das instituições se manifestou.

O Núcleo Amigos da Terra/Brasil, que acompanha os financiamentos e as obras hídricas na bacia do rio Uruguai, realizou vôo na região de Campos Novos, neste sábado (24), para registrar imagens do esvaziamento e as rachaduras no empreendimento. A vice-presidente do NAT/Brasil e Coordenadora da Rede de ONGs da Mata Atlântica, Kathia Vasconcellos Monteiro registrou imagens inéditas dos impactos ambientais, "foi possível ver a mata Atlântica que foi afogada com a construção da barragem e que agora está descoberta com o esvaziamento", afirma. As fotos ainda mostram a extensão da fissura, "uma rachadura desta extensão revela os erros na construção do empreendimento e justifica a apreensão que a população da região sofre vivendo sob os riscos e os impactos das barragens no rio Uruguai", enfatiza.

O AIAIAI do rio Uruguai

Avaliação Ambiental Integrada (AAI) dos Aproveitamentos Hidrelétricos da Bacia Hidrográfica do Rio Uruguai: Entre tantos consórcios mais um lance da UHE Barra Grande.

Para viabilizar a continuidade das obras da UHE Barra Grande, em setembro de 2004 o Governo Federal patrocinou um malfadado TAC, travestido de "Termo de Compromisso". Nesse TAC o Ministério de Minas e Energia – MME se compromete a:

    I – Promover diretamente, ou por meio da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, empresa pública vinculada ao MME, criado pelo Decreto nº 5.184, de 16 de agosto de 2004, a avaliação ambiental integrada dos aproveitamentos de geração hidrelétrica planejados, em estudo, com concessão e em operação na Bacia do rio Uruguai, observado o TERMO DE REFERÊNCIA a que se refere à Cláusula Oitava deste instrumento (Transcrição do item I da Cláusula Quinta).

Em janeiro de 2006, consolidado o crime ambiental que caracterizou o licenciamento ambiental da UHE Barra Grande, é apresentado o detalhamento do Programa de Trabalho para a realização da avaliação ambiental integrada dos aproveitamentos hidrelétricos do rio Uruguai, singelamente designada como AAI. O curioso é que a EPE contratou o Consórcio Themag-Andrade & Canellas-Bourscheid, conhecidos "prestadores de serviços" a BAESA. Resumo da ópera: o MMA abdicou para o MME, este repassou a EPE, a qual, por sua vez, "terceirizou" ao tal consórcio.

A AAI é apresentada através de documento genérico, repetitivo e inconsistente. A proposta apresentada incorpora a mesma lógica desenvolvimentista que impregnou o planejamento hidrelétrico da década de 60. Mesmo com a ampla repercussão dos absurdos perpetrados em Barra Grande, a proposta consegue o feito de ampliá-los. É tão competente na busca da viabilização dos empreendimentos hidrelétricos que chega a mencionar compromissos inexistentes no TAC de 2004. Cita, por exemplo, uma aludida condição para o prosseguimento do licenciamento da UHE Barra Grande, e também de todos os empreendimentos (grifo nosso) não licitados até 24/09/2004 (pág 6).

O documento frisa que em função da extensão da área de estudo (174.612 km2 ) e o prazo exíguo (8 meses), "os diagnósticos, prognósticos e recomendações não se aprofundarão em detalhes (pag 7). O Consórcio proponente assume o pressuposto que já existe uma ampla base de dados, coletados ao longo da realização dos diversos trabalhos na bacia hidrográfica, o que dispensa maiores investimentos. E assim passa a apresentar um cronograma para os trabalhos de campo surpreendente: 9 dias ininterruptos. Porém o documento alerta: "obviamente, o andamento dos trabalhos e as condições das rodovias poderão afetar a programação inicial,…". O obviamente admite a possibilidade de, em se encontrando estrada boa e sem trânsito, fechar o trabalho em quatro dias, ou menos, quem sabe. Essa velocidade supersônica na coleta de dados em campo surpreende, afinal, entre a nascente na Serra Geral e a foz do rio Quaraí são 1.627 Km de extensão. Nesse percurso estão 17 municípios catarinenses, e mais de 40 municípios gaúchos contando apenas aqueles diretamente banhados pelas águas do Uruguai.

A proposta é ainda pródiga na adoção de metodologias e ferramentas inovadoras. Os dados serão sistematizados e compilados para produção de mapas temáticos, usando-se uma versão de programa computacional defasado pelo menos em duas gerações (ArcView 3.2), e as fontes primárias de dados são, primordialmente (EIAs e RIMAs). Exatamente eles, os EIAs-RIMAs, são a razão maior dos conflitos atuais nos processos de licenciamento, quer pela inconsistência técnica ou mesmo pelas evidentes fraudes já detectadas; nunca é demais lembrar a UHE Barra Grande. A propósito, entre as principais fontes constam nada menos que 12 estudos referentes a UHE Barra Grande, e outros 9 estudos realizados pela ENGEVIX, a empresa responsabilizada pela fraude em Barra Grande. Além disso, as lacunas existentes nas obras de referência são alarmantes, notadamente relativas a biodiversidade regional. Obras importantes e indispensáveis foram simplesmente negligenciadas, enquanto outras, irrelevantes no contexto dessa avaliação engrossam a lista. Um trabalho do final da década de 60, que apresenta a relação diâmetro copa em Araucaria angustifolia e Pinus elliottii na Província de Misiones, por exemplo, deve contribuir muito para a atual AAI, pois consta entre as obras de referência.

A proposta prevê a atuação de uma equipe de especialistas ad hoc, composta por seis profissionais sendo 2 geólogos, 2 engenheiros, 1 geógrafo e 1 oceanólogo. Poderíamos estranhar um oceanólogo no rio Uruguai, porém a área de atuação desse consultor, o único com vínculo direto com biodiversidade, é biologia de peixes de água doce e "manejo de ambientes aquáticos artificialmente represados". Para se prover uma abordagem satisfatória seria adequado que essa equipe de consultores incorporasse profissionais de outras áreas do conhecimento, afinal a abordagem é "integrada".

A proposta é tão "ousada" que chega a desconsiderar a legislação vigente, pois nela não existe espaço para a opção do "não fazer". Tudo se resume a mitigação e/ou compensação dos impactos ambientais negativos dos empreendimentos planejados, em construção ou em operação (ver pág. 28). Ou seja, antes mesmo de iniciar os trabalhos a AAI já admite que todos os projetos previstos são "ajustáveis".

Além de não inserir qualquer metodologia associada à biologia da conservação, ou mesmo técnicas de ecologia da paisagem e planejamento sistemático da conservação, o documento ao relacionar políticas, planos e programas existentes para a região, sequer menciona que a área abrange zona núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica; parece desconhecer a existência de um mapeamento das áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade, e negligencia solenemente o Plano Mata Atlântica. Será que sequer para ambientes tão deslumbrantes como é o caso do Salto de Yucumã, o critério de "insubstituibilidade" vai ser utilizado? Pela proposta apresentada não: tudo é passível de mitigação e compensação, portanto substituível, alagável.

O Documento informa que a equipe técnica do Consórcio fará reuniões com o "público qualificado" e reuniões para consultas públicas. Será que o MMA qualificará esse público, ou repassará a missão ao MME, que designará a EPE, que, mais uma vez terceirizará. Pelo exposto, claro fica que sobrarão as "consultas" para o dito "público desqualificado". E, como tudo é rápido e expedito, as consultas públicas já se iniciam na semana de 27 a 31 de março, providencialmente no mesmo período em que ocorre a COP-8, onde estarão as principais lideranças dos movimentos socioambientais da região.

Considerando o nefasto histórico de licenciosidade que dominou o processo de Barra Grande, e pela forma como se apresenta, essa avaliação ambiental integrada bem que poderia ser designada por outra sigla: um AIAIAI cairia bem melhor.

João de Deus Medeiros é
Biólogo, Doutor em Botânica, Professor Adjunto no Departamento de Botânica (UFSC)
Membro do Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica em SC,
Membro das ONGs Pau-Campeche e Apremavi

Estreito do Rio Uruguai, inundado pela Hidrelétrica de Itá

Em algum lugar do passado

Um dia desses, numa conversa com o Marcos Sá Corrêa, comecei a contar uma história e ele me disse: “escreve”! Então, aí vai.

Alguns amigos têm brincado comigo, dizendo que eu estou proibida de visitar o Rio Uruguai e suas belezas, que ainda estão ao alcance dos olhos, das mãos e pés e dos corações. Falam isso porque os lugares pelos quais lutei, até agora, acabaram sendo inundados.

Seria realmente maravilhoso se essa fosse a chave da charada para salvar da inundação os lugares que estão ameaçados.

Eu juro que nem sequer ia querer ver as fotos desses lugares… Infelizmente, não é tão simples assim e eu não tenho este poder. Aliás, nem todos juntos, os ambientalistas que lutam por esses lugares, temos esse poder. Mas afinal, onde esta história toda começou?

Na passagem dos anos 1990 para 1991, um grupo de ambientalistas acampou às margens do Rio Uruguai, no ponto conhecido como Estreito, no limite entre Concórdia (SC) e Marcelino Ramos (RS). Queríamos chamar a atenção das autoridades para vários aspectos que estavam sendo deixados de lado na avaliação do Eia-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental) da hidrelétrica de Itá.

A obra não iria apenas inundar uma cidade inteira, mas também deixar debaixo d’água o Estreito do Rio Uruguai, monumento paisagístico inigualável – um lugar que em algumas épocas do ano podia ser atravessado com apenas um passo.

Dava ainda para fazer ali uma outra peripécia: ficar com um pé em Santa Catarina e outro no Rio Grande do Sul e todo o grandioso Rio Uruguai passando por uma enorme garganta debaixo de suas pernas.

E tudo isso por quê? Porque nem sequer se cogitou reduzir um pouco a altura da barragem e assim salvar das águas esses dois lugares. Na época também já se falava nas Dyckias, neste caso, a brevifolia e a distachya, que ficaram conhecidas e extintas da natureza, anos depois, em Barra Grande.

Transformação radical

Perdemos! E por que perdemos? Uma visita a Itá, ou melhor, a Nova Itá, no início de 2006, depois de todos esses anos, nos dá algumas pistas do motivo. Percorrendo as ruas maravilhosamente arborizadas da cidade, observando as casas construídas com perfeição, o planejamento e a organização de toda a estrutura e analisando o PIB do município, entende-se por que é tão difícil concorrer com o poderio econômico.

A cidade tem, além do lago, um parque aquático público com 13 piscinas, construído pela prefeitura. Fiquei com vontade de gritar: “Eu também quero morar em Itá!” Na verdade, nem sei se temos outras cidades desse nível no Brasil. É, meus amigos, dinheiro faz coisa.

A outra pista importante nos é dada quando constatamos que toda a história da cidade antiga – os usos do rio, as memórias – foi trabalhada de forma a não mais ser tratada como história, e sim como museu. Ou seja, virou uma história antiga e distante que a maioria foi induzida a esquecer. Ou então virou atração turística.

A igreja, da qual só sobraram as torres, tem uma pequena réplica no centro da cidade. As torres originais podem ser visitadas de barco ou apreciadas à noite, sob uma linda iluminação, às vezes azul, outras, verde. O estreito? Virou um banner no centro de “educação ambiental”. Ninguém mais quer saber da Itá antiga e eu não os culpo.

Para que não me acusem de estar exagerando ou então que me atribuam outros adjetivos menos benevolentes, basta citar como exemplo a cidade de Anita Garibaldi (SC), agora às margens do recém criado lago de Barra Grande.

Para quem quiser conferir, a cidade já exibe em suas páginas da internet um outro nome. Rapidinho deixou de ser a “cidade dos pinhais” para agora ostentar um nome mais pomposo: “cidade dos lagos”. As araucárias centenárias, além de inundadas, já foram varridas da memória num piscar de olhos.

E as Dyckias? Ah! Fomos visitar os exemplares resgatados em Itá. Na verdade, são duas toiças de distachya e brevifolia, meio amareladas, plantadas no horto, onde os abnegados encarregados tentam produzir mudinhas para a conservação ex situ, ou seja, fora de seu local original na natureza. Não há como ter certeza da sobrevivência das espécies no médio e longo prazo.

Com isso tudo, pudemos observar na prática a forma como são tratadas nossas espécies, principalmente as em risco de extinção: viram mudinhas para serem plantadas em outros lugares… E daí?

Inteligência circular

Com essas ações, pretendem nos calar dizendo que são “o máximo” o que conseguem fazer. Mudar um pouco os projetos das obras para salvar lugares e espécies, nem pensar. Tudo em nome da energia a qualquer custo. É importante deixar claro, mais uma vez, que não somos contra toda e qualquer obra de hidrelétrica, mas a inflexibilidade dos responsáveis com essas obras está fazendo com que se perca um patrimônio inestimável neste país. De que vai adiantar termos luz, se não tivermos mais nada de original para ver?

O que precisamos é poder dizer “não” para algumas obras e dizer “assim não” ou “aqui não” para outras. Isso seria bem mais razoável. Mas a dificuldade de ser razoável também tem explicação. Em recente audiência com a ministra da Casa Civil, tocando no assunto hidrelétricas, ela assumiu, às vezes como ministra das Minas e Energia, falando em alto e bom tom e sem possibilidade de manifestações contrárias que a única saída para o Brasil é a geração de energia hidrelétrica. De acordo com ela, a solar ocupa espaços enormes e a eólica é inviável. E ainda remendou: “é claro, também podemos optar pela nuclear…”.

Esse é o tipo de pensamento que eu resolvi chamar de inteligência circular porque fica dando voltas em torno de si mesmo, não consegue se expandir e nem ser estratégico. E o que isso tudo tem a ver com os outros lugares do rio Uruguai? O fato é que estão igualmente ameaçados e vamos precisar de toda nossa energia – não a das hidrelétricas, mas a interna – e a inteligência “inteligente” para podermos mudar o rumo dessa história.

Pois é. Fui à Ita e ainda não tive coragem de ir a Barra Grande. Mas com certeza irei e voltarei a Paiquerê, ao Yucumã (um dos maiores salto longitudinal do mundo) e a outros lugares preciosos, tantas vezes quantas forem necessárias, para que esses patrimônios sejam preservados das absurdas hidrelétricas planejadas na década de 70.

Dyckia distahya, a bromélia extinta da natureza

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