Avaliação Ambiental Integrada (AAI) dos Aproveitamentos Hidrelétricos da Bacia Hidrográfica do Rio Uruguai: Entre tantos consórcios mais um lance da UHE Barra Grande.
Para viabilizar a continuidade das obras da UHE Barra Grande, em setembro de 2004 o Governo Federal patrocinou um malfadado TAC, travestido de "Termo de Compromisso". Nesse TAC o Ministério de Minas e Energia – MME se compromete a:
- I – Promover diretamente, ou por meio da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, empresa pública vinculada ao MME, criado pelo Decreto nº 5.184, de 16 de agosto de 2004, a avaliação ambiental integrada dos aproveitamentos de geração hidrelétrica planejados, em estudo, com concessão e em operação na Bacia do rio Uruguai, observado o TERMO DE REFERÊNCIA a que se refere à Cláusula Oitava deste instrumento (Transcrição do item I da Cláusula Quinta).
Em janeiro de 2006, consolidado o crime ambiental que caracterizou o licenciamento ambiental da UHE Barra Grande, é apresentado o detalhamento do Programa de Trabalho para a realização da avaliação ambiental integrada dos aproveitamentos hidrelétricos do rio Uruguai, singelamente designada como AAI. O curioso é que a EPE contratou o Consórcio Themag-Andrade & Canellas-Bourscheid, conhecidos "prestadores de serviços" a BAESA. Resumo da ópera: o MMA abdicou para o MME, este repassou a EPE, a qual, por sua vez, "terceirizou" ao tal consórcio.
A AAI é apresentada através de documento genérico, repetitivo e inconsistente. A proposta apresentada incorpora a mesma lógica desenvolvimentista que impregnou o planejamento hidrelétrico da década de 60. Mesmo com a ampla repercussão dos absurdos perpetrados em Barra Grande, a proposta consegue o feito de ampliá-los. É tão competente na busca da viabilização dos empreendimentos hidrelétricos que chega a mencionar compromissos inexistentes no TAC de 2004. Cita, por exemplo, uma aludida condição para o prosseguimento do licenciamento da UHE Barra Grande, e também de todos os empreendimentos (grifo nosso) não licitados até 24/09/2004 (pág 6).
O documento frisa que em função da extensão da área de estudo (174.612 km2 ) e o prazo exíguo (8 meses), "os diagnósticos, prognósticos e recomendações não se aprofundarão em detalhes (pag 7). O Consórcio proponente assume o pressuposto que já existe uma ampla base de dados, coletados ao longo da realização dos diversos trabalhos na bacia hidrográfica, o que dispensa maiores investimentos. E assim passa a apresentar um cronograma para os trabalhos de campo surpreendente: 9 dias ininterruptos. Porém o documento alerta: "obviamente, o andamento dos trabalhos e as condições das rodovias poderão afetar a programação inicial,…". O obviamente admite a possibilidade de, em se encontrando estrada boa e sem trânsito, fechar o trabalho em quatro dias, ou menos, quem sabe. Essa velocidade supersônica na coleta de dados em campo surpreende, afinal, entre a nascente na Serra Geral e a foz do rio Quaraí são 1.627 Km de extensão. Nesse percurso estão 17 municípios catarinenses, e mais de 40 municípios gaúchos contando apenas aqueles diretamente banhados pelas águas do Uruguai.
A proposta é ainda pródiga na adoção de metodologias e ferramentas inovadoras. Os dados serão sistematizados e compilados para produção de mapas temáticos, usando-se uma versão de programa computacional defasado pelo menos em duas gerações (ArcView 3.2), e as fontes primárias de dados são, primordialmente (EIAs e RIMAs). Exatamente eles, os EIAs-RIMAs, são a razão maior dos conflitos atuais nos processos de licenciamento, quer pela inconsistência técnica ou mesmo pelas evidentes fraudes já detectadas; nunca é demais lembrar a UHE Barra Grande. A propósito, entre as principais fontes constam nada menos que 12 estudos referentes a UHE Barra Grande, e outros 9 estudos realizados pela ENGEVIX, a empresa responsabilizada pela fraude em Barra Grande. Além disso, as lacunas existentes nas obras de referência são alarmantes, notadamente relativas a biodiversidade regional. Obras importantes e indispensáveis foram simplesmente negligenciadas, enquanto outras, irrelevantes no contexto dessa avaliação engrossam a lista. Um trabalho do final da década de 60, que apresenta a relação diâmetro copa em Araucaria angustifolia e Pinus elliottii na Província de Misiones, por exemplo, deve contribuir muito para a atual AAI, pois consta entre as obras de referência.
A proposta prevê a atuação de uma equipe de especialistas ad hoc, composta por seis profissionais sendo 2 geólogos, 2 engenheiros, 1 geógrafo e 1 oceanólogo. Poderíamos estranhar um oceanólogo no rio Uruguai, porém a área de atuação desse consultor, o único com vínculo direto com biodiversidade, é biologia de peixes de água doce e "manejo de ambientes aquáticos artificialmente represados". Para se prover uma abordagem satisfatória seria adequado que essa equipe de consultores incorporasse profissionais de outras áreas do conhecimento, afinal a abordagem é "integrada".
A proposta é tão "ousada" que chega a desconsiderar a legislação vigente, pois nela não existe espaço para a opção do "não fazer". Tudo se resume a mitigação e/ou compensação dos impactos ambientais negativos dos empreendimentos planejados, em construção ou em operação (ver pág. 28). Ou seja, antes mesmo de iniciar os trabalhos a AAI já admite que todos os projetos previstos são "ajustáveis".
Além de não inserir qualquer metodologia associada à biologia da conservação, ou mesmo técnicas de ecologia da paisagem e planejamento sistemático da conservação, o documento ao relacionar políticas, planos e programas existentes para a região, sequer menciona que a área abrange zona núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica; parece desconhecer a existência de um mapeamento das áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade, e negligencia solenemente o Plano Mata Atlântica. Será que sequer para ambientes tão deslumbrantes como é o caso do Salto de Yucumã, o critério de "insubstituibilidade" vai ser utilizado? Pela proposta apresentada não: tudo é passível de mitigação e compensação, portanto substituível, alagável.
O Documento informa que a equipe técnica do Consórcio fará reuniões com o "público qualificado" e reuniões para consultas públicas. Será que o MMA qualificará esse público, ou repassará a missão ao MME, que designará a EPE, que, mais uma vez terceirizará. Pelo exposto, claro fica que sobrarão as "consultas" para o dito "público desqualificado". E, como tudo é rápido e expedito, as consultas públicas já se iniciam na semana de 27 a 31 de março, providencialmente no mesmo período em que ocorre a COP-8, onde estarão as principais lideranças dos movimentos socioambientais da região.
Considerando o nefasto histórico de licenciosidade que dominou o processo de Barra Grande, e pela forma como se apresenta, essa avaliação ambiental integrada bem que poderia ser designada por outra sigla: um AIAIAI cairia bem melhor.
João de Deus Medeiros é
Biólogo, Doutor em Botânica, Professor Adjunto no Departamento de Botânica (UFSC)
Membro do Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica em SC,
Membro das ONGs Pau-Campeche e Apremavi